sábado, 14 de agosto de 2010

Chakana ou Cruz Andina


Em minhas viagens ao Peru, sempre fui atraído pelo invisível que se torna visível nos símbolos e artefatos das civilizações pré-colombianas. Desde a majestade dos Incas até as culturas que os precederam, como as que habitaram Tiwanaku – um lugar que, confesso, merece ser visitado muitas vezes –, sinto-me transportado para outro tempo, outro espaço, quase outra vida. O deus Tumi, a Pachamama que abraça a terra, a chica sagrada que parece engarrafar a própria essência dos Andes… cada elemento é um portal que me arrasta para um mundo que se recusa a ser apenas passado.

Entre todos os símbolos que encontrei, nenhum me captura tanto quanto a Chakana, a famosa cruz andina. Ela está por toda parte: esculpida em madeira, bordada em tecidos, pintada em portas de casas e igrejas, insistindo em nos lembrar que há uma ordem mais profunda, invisível, por trás do que os olhos podem ver. Para a mitologia incaica, a Chakana é a árvore da vida – uma árvore que, como tantas outras em culturas ao redor do mundo, conecta céus, terra e submundo em um único gesto simbólico. Seus degraus e polos, maiores e menores, parecem apontar para os quatro cantos do mundo, uma geometria sagrada que organiza o cosmos em níveis e dimensões.

O quadrado central da cruz representa os mundos: Hana Pacha, o mundo superior dos deuses; Kay Pacha, nosso mundo, terreno e efêmero; e Ucu ou Urin Pacha, o mundo inferior, habitado por espíritos e ancestrais, em contato direto com a terra. O círculo no centro – o Axis – é mais do que um vazio: é passagem, eixo cósmico pelo qual o xamã transita, viajando entre dimensões, conectando o visível ao invisível. Ele também remete a Cusco, o coração pulsante do Império Inca, e à constelação do Cruzeiro do Sul, lembrando que o microcosmo e o macrocosmo são apenas faces da mesma verdade.

Mas se a Chakana tem um significado técnico profundo, ela carrega para mim uma dimensão ainda mais pessoal. Sempre que a vejo, penso nas viagens, nos amigos que caminharam comigo por estas montanhas – Silvana, Humberto –, e nas histórias que vivemos entrelaçados com aquela terra antiga. A cruz tornou-se um símbolo de amizade, de conexão mística entre o mundo presente e aqueles tempos remotos que, talvez, já tenha visitado em outras vidas ou realidades paralelas. Ela traz boas lembranças, uma sensação de continuidade, de pertencimento a algo maior e silenciosamente eterno.

O xamã, figura que transcende sacerdotes, feiticeiros e curandeiros, era capaz de alterar seu estado de consciência à vontade, mergulhando no submundo para descobrir as causas de doenças ou desgraças humanas – quase sempre atribuídas a violação de tabus. Esses trances, induzidos pelo consumo de substâncias alucinógenas, como a ayahuasca, eram a ponte entre o humano e o divino, entre o visível e o invisível. Ao contemplar a Chakana, sinto que cada viagem minha, cada amizade, cada memória, é uma pequena travessia xamânica: um mergulho no cosmos em busca de sentido e beleza.

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