sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O Tempo que Respira

Quando éramos crianças, o mundo cabia na palma da mão. Brincávamos de ser grandes. Passávamos batom, vestíamos ternos de papel, comprávamos jornais que não sabíamos ler, apenas para parecer. O tempo parecia flutuar, paciente, invisível.

Depois veio a adolescência. E com ela a pressa. Falávamos alto para o mundo ouvir. Amávamos como se o amor fosse urgente. Cada livro era uma descoberta. Cada beijo, uma revelação. Achávamos que a vida adulta seria chegada. E, quando chegou, percebemos que o bom estava em nós, antes de sabermos o que era bom.

Tudo se tornou problema. Até respirar parecia responsabilidade. E as cobranças — ah, elas nunca foram embora. Só mudaram de voz. Comparações surgiam como sombras: o filho do vizinho, o irmão, o amigo. Queriam ajudar, talvez. Atrapalhavam, talvez. E quando atrapalhavam, talvez ajudassem.

O tempo não espera. Não pede licença. Às vezes corre, às vezes se arrasta. E nós, no meio, tentando segurar o que escapa. Hoje olho e não concordo. Mas talvez seja só hoje. Espero que ele não me prenda, que não me faça repetir dias sem fim.

Ser livre é esquecer o relógio. É não contar os dias. É existir sem medi-los. Felizes são aqueles que não se prendem às horas, que escutam o ritmo que vem de dentro e seguem-no, mesmo sem saber.

O tempo passa. Silencioso. Invisível. E nós, passageiros, respiramos dentro dele. Algumas vezes, só algumas, conseguimos estar inteiros, inteiros no instante, inteiros no tempo que passa sem nome.

domingo, 24 de outubro de 2010

A prece para achar a alma gêmea

Já compartilhei algo sobre isso antes, mas desta vez quero contar de uma forma mais detalhada, de dentro, como se fosse um desdobrar de pensamento e sentimento.

Cada pessoa que nasce neste mundo chega incompleta, metade de um inteiro. Dentro de cada um existe uma sensação de vazio, uma falta inexplicável, até encontrarmos a nossa alma gêmea. A importância desse encontro é essencial: é como se o mundo se completasse e tudo ganhasse sentido.

Se você se encontra sozinho e, de algum modo, não sente esse vazio, talvez seja hora de uma correção. O Tikunim — o Livro das Correções — nos guia nesse caminho, oferecendo ensinamentos sobre como alinhar nossas vidas para encontrar a alma destinada. Não se trata apenas de esperar: é sobre reconhecer que não podemos ser egoístas, que a energia que carregamos deve ser compartilhada e transformada pelo poder do amor. O verdadeiro amor, aquele que transcende a mera atração, é o que nos leva até a alma gêmea que nos completa.

O primeiro passo é acreditar, com todo o coração, que fomos destinados a encontrar essa alma. Há mais de dois mil anos, o Talmud já nos lembrava disso:

"Quarenta dias antes de uma pessoa ser concebida neste mundo, ela é anunciada no mundo espiritual: a filha deste homem está destinada a casar com este homem, a casa neste lugar será destinada para seu lar, e este campo (morada, negócio ou profissão) será destinado a esta pessoa." (Talmud Sota 2a.)

E então, a oração surge como um chamado íntimo, um pedido que brota do coração:

"Ribono Shel Olam, Mestre do Universo, esta é a lei espiritual do destino, a declaração foi feita antes de minha alma vir à Terra. Por favor, guie-me e ajude-me a encontrar o caminho certo para minha vida, o lar correto para viver. Eu realmente desejo encontrar minha alma gêmea; ajude-me a encontrar a alma gêmea destinada que declarei para mim no paraíso, 40 dias antes de ser concebido.
Por favor, Ribono Shel Olam, Mestre do Universo, encontre o caminho para mim onde não haverá outros caminhos, guie-me e coloque-me no caminho certo para o destino de minha alma, para que eu possa preencher minha vida com minha alma gêmea, que precisa de mim assim como eu a preciso dela. Pelo amor de minha alma gêmea, por favor ajude-me a encontrá-la, para que possamos ser apenas um juntos."

O costume é repetir essa prece três vezes ao dia. A essência não está nas palavras exatas, mas na emoção que as acompanha, na sinceridade do coração que pede ajuda divina para encontrar o destino traçado antes de chegarmos à Terra.

A paciência é parte do processo. O livro assegura que a espera não será maior que sete anos, mas cada momento é uma oportunidade de conexão, reflexão e crescimento interior. É recomendado, nesse caminho, ler semanalmente o capítulo 29 de Gênesis, que narra a história de Jacó e Raquel, o Salmo 121, e, para os homens, o “Eshes Chayil” ao menos uma vez por semana, na sexta-feira à tarde, antes do Kidush. Provérbios 31:10–31 também é uma leitura preciosa, cheia de sabedoria sobre virtude, amor e propósito.

Eu fiz isso. Rezei, mentalizei, senti o vazio que precisava ser preenchido, e me deixei guiar. E então, em 2013, viajei a Safed, cidade antiga e mística, onde cada rua parecia respirar história e cada pedra carregava a memória de séculos de espiritualidade. Ali, recebi bênçãos que pareciam tocar algo profundo em minha alma, como se o próprio tempo estivesse me preparando, silencioso, paciente.

E, no mesmo mês, mas um ano depois, em novembro de 2014, o destino se revelou com delicadeza e força: conheci minha esposa. Um encontro que não precisou de explicações, apenas se completou, e tudo o que antes parecia vazio encontrou seu lugar. É impossível esquecer a sensação de que cada oração, cada prece silenciosa, cada desejo sincero, tinha finalmente desaguado na realidade. A alma gêmea, enfim, se manifestou. (*este trecho acrescentei anos mais tarde ao texto original de 2010 para relatar que funcionou, ou seja, voltei do futuro para contar se dá certo ou não). 

Encontrar a alma gêmea é mais que um encontro; é a união de caminhos, destinos e energias, é a concretização de um plano espiritual antigo, anunciado muito antes de nascermos. É a descoberta de que, em algum lugar, há alguém que nos completa, assim como nós a completamos. E essa busca, quando feita com fé, amor e paciência, transforma não apenas nossas vidas, mas a própria forma como entendemos o mundo e a presença divina nele.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Entre a Luz e a Sombra do Coração

Fecho os olhos e penso no coração. Não só no meu, mas no de todos. No que pulsa escondido, silencioso, nos lugares que nem sempre conhecemos. Há portas que rangem, portas que se fecham sozinhas, portas que jamais abrimos. Há quartos com memórias, quartos com paixões, quartos com segredos que nem sabemos que existem. Mas há uma fresta. Sempre há uma fresta. Um fio de luz que atravessa a escuridão. Pequeno, tímido, quase invisível, mas insiste.

O mal existe. Às vezes parece enorme. Imenso. Intransponível. Mas ele não é absoluto. Nem aquele que machuca, que corta, que corrói, consegue apagar tudo. Sempre há um fio de bondade, mesmo se ele treme. Mesmo se ele hesita. Mesmo se quase não se percebe. Ele existe, escondido entre as intenções, entre o medo, entre o silêncio. Mas existe.

Não quero dizer que o mal é desculpável. Não é. Machuca, destrói, consome. Mas quando pensamos que alguém é só mal, esquecemos o que ainda pode ser. Esquecemos que, mesmo no pior gesto, mesmo no impulso mais sombrio, há fragmentos de luz. Fragmentos de bem que não se entregam, que resistem, que esperam. Pequenos, tímidos, mas persistentes.

O coração é traiçoeiro. Ele é paixão, impulso, urgência. Ele quer agora. Ele não espera. Ele é imediato, visceral, às vezes cego. A paixão é um braço de ferro invisível que nos segura na ponta de uma torre e depois nos lança ao chão. Quem decide com o coração se lança. Quem decide com o coração se esquece do tempo, se esquece da prudência, se esquece de si mesmo.

E a paciência? Paciência é um intervalo. Um espaço silencioso entre o impulso e o ato. Entre o sentir e o pensar. Entre o que queremos e o que deveríamos. É ali, nesse silêncio, que o bem pode florescer. Mesmo nos corações mais densos, mesmo onde a sombra parece absoluta. Ali, se olharmos com cuidado, há sempre algo que espera. Algo que pode ser resgatado. Algo que pode nos salvar — ou salvar outros.

A vida ensina, sempre de formas sutis, que somos pequenos. Pequenos, frágeis, quase invisíveis. Mas capazes. Capazes de mudar, de reparar, de escolher novamente. Cada gesto, cada ato, cada suspiro carrega uma oportunidade. Uma fagulha de bem que pode surgir. Frágil, quase imperceptível, mas real. Sempre real.

As paixões complicam. Elas nos cegam. Elas nos empurram. Elas nos fazem ferir sem perceber. Mas também nos fazem sentir. Sem elas, talvez não houvesse vida. O coração é instinto, é impulso, é vida pulsando. Mas se não houver reflexão, se não houver cuidado, o caminho se perde. E a bondade que poderia surgir se esconde.

A memória é um livro antigo. Algumas páginas estão em branco, outras rabiscadas. Algumas esquecidas, outras quase queimadas pelo tempo. Podemos reler, apagar, escrever de novo. Talvez seja ilusão. Talvez seja real. Mas é sempre possível. Sempre. Uma pequena chance. Uma oportunidade que parece mínima, mas que basta.

O bem e o mal se confundem. Nunca são separados. Nunca. Estão entrelaçados como raízes, como sombras que dançam na luz. O que parece mal pode conter bem. O que parece bem pode carregar sombra. Cada escolha é fio, cada gesto é chance, cada pensamento é espaço para resgatar ou perder.

Observar é aprender. Observar a si mesmo, observar os outros, observar o silêncio, observar a sombra e a luz. Esperar que o bem escondido tenha espaço. Que possamos agir com consciência, não só com impulso. Que possamos lembrar que a vida nos dá chances. Pequenas, frágeis, mas reais.

Mesmo no coração mais torto, há algo que resiste. Algo pequeno, tímido, silencioso. Algo que insiste em existir, mesmo quando tudo parece perdido. E isso já basta. Basta para acreditar. Acreditar que, mesmo na sombra, há luz. Que, mesmo nos impulsos, há oportunidade. Que, mesmo nos erros, há espaço para reparar.

E se fecharmos os olhos, de novo, veremos que cada coração, mesmo o mais quebrado, guarda algo que não pode ser destruído. Um fio, uma fresta, uma luzinha. Pequena, quase invisível. Mas suficiente. Suficiente para continuar. Suficiente para tentar. Suficiente para existir.

sábado, 2 de outubro de 2010

É, choveu...

chuva e dúvida

chuva para varrer a poeira da alma
chuva que escorre telhados e escuta as árvores
chuva que enche o lago de silêncio e sapos

ô chuva que chora do céu
chuva que cheira a areia molhada
que cheira a folhas verdes
que cheira a pássaros molhados
que cantam dentro do frescor

a água acorda meus pensamentos
desenrola meus dedos
me devolve coisas que eu nem lembrava
e faz meu coração balbuciar agradecimentos

vou pensando nela
vou pensando na outra
vou pensando na dúvida
na dúvida que se curva entre calor e frescor
na dúvida que às vezes arde
às vezes refresca

sei que o melhor amor
não é o que se mede
não é o que se explica
é o que se esconde na chuva
debaixo do cobertor
onde o mundo se encolhe
e só sobra o coração
e o silêncio que o coração entende

chuva que lava,
chuva que devolve,
chuva que deixa o corpo leve
e a alma molhada de sonhos