sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Brasília e o Teatro do Reconhecimento

Brasília tem um tipo humano que se reconhece à distância. Costuma chegar com o crachá pendurado no pescoço, mesmo quando não há controle de acesso. É o crachá invisível: cargos, títulos, vínculos institucionais — tudo meticulosamente mencionado na primeira conversa, como quem estende um cartão de visitas gravado em letras douradas. Ali, entre gabinetes e auditórios, esse tipo de pessoa prospera, porque sabe manejar a linguagem formal, as hierarquias, as pequenas cortes invisíveis que cercam o poder.

Conheci uma delas. Representava um órgão do governo e tinha formação em Direito, acompanhada de títulos que gosta de exibir com o mesmo zelo com que outros guardam joias de família. Recordo um telefonema, num dia qualquer, em que ela, imaginando falar com uma “simples secretária”, deixou o rigor se transformar em aspereza. Era autoritária, cortante, distribuía ordens como quem distribui cartões de estacionamento: mecânica e sem olhar nos olhos. O detalhe é que, meses depois, descobriu-se que aquela “secretária” não só não era secretária, como ocupava um espaço de influência muito diferente daquele que ela supunha.

O reencontro foi quase teatral. Em um evento comunitário, onde cargos nada valem, a mesma pessoa tornou-se cordial, sorridente, até afável. A necessidade de aprovação pairava no ar como um perfume doce demais, desses que denunciam o excesso. Já não havia ordens, apenas perguntas; não havia imposição, apenas tentativa de intimidade. Como um peixe fora d’água tentando se convencer de que o lago era seu, esforçava-se para ser parte de um ambiente que não se dobrava a títulos nem crachás.

Na Cabala, há uma lição antiga: o mundo se sustenta pelo equilíbrio entre Gevurah (o rigor) e Chesed (a bondade). O rigor é necessário, mas sem bondade torna-se dureza; a bondade é vital, mas sem rigor vira fraqueza. Quando uma pessoa aplica o rigor apenas sobre os que julga fracos e a bondade apenas para os que podem lhe trazer vantagem, ela quebra esse equilíbrio — e quebra também algo dentro de si.

Essa postura, tão frequente nos corredores de Brasília, nasce de insegurança e de um desejo constante de validação. É o paradoxo: ao tentar demonstrar poder, expõe-se a fragilidade. Quem conhece, mantém distância — não por desprezo, mas por serenidade. Pois, no fundo, essas pessoas travam batalhas que só elas conhecem, e às vezes o que se vê como arrogância é apenas medo disfarçado.

Talvez a Cabala tenha razão ao dizer que todo encontro é uma oportunidade de tikkun, de reparação. Mas essa reparação só começa quando a pessoa percebe que o verdadeiro reconhecimento não se compra, não se força, não se ostenta. Ele chega quando já não é mais necessário — e quando não há mais diferença entre o tom de voz usado para falar com um secretário ou com um embaixador. Porque, para quem alcança esse ponto, todo ser humano tem o mesmo valor.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Alma Gêmea: uma explicação mais profunda

Há coisas que não se explicam com palavras comuns. A alma gêmea é uma delas. A Cabala nos ensina que, antes de nos encarnar neste mundo, cada alma era uma centelha única, inteira e pura. Por um motivo que escapa à nossa compreensão, ela se fragmentou — dividida, mas nunca perdida. Cada pedaço carrega a lembrança daquilo que é completo, e a vida, com seus desvios e encontros, é o caminho de retorno.

Encontrar a alma gêmea não é acaso; é reconhecimento. Há pessoas que passam por nós sem deixar rastro. Outras chegam como quem atravessa a névoa do tempo e desperta algo que dormia há séculos. Não se trata apenas de afeição, nem de companhia. Trata-se de luz. Uma luz que nos mostra o que ainda não conhecíamos de nós mesmos. E, por isso, às vezes dói. Porque essa luz revela não só o que somos, mas o que deixamos de ser.

A alma gêmea é um espelho sem reflexo — não replica, não reproduz, não completa no sentido de preencher uma lacuna física ou emocional. Ela desafia, provoca, desperta. Ela nos lembra que a unidade nunca esteve fora, mas sempre dentro de nós, escondida atrás de máscaras, rotinas, distrações. E que reconhecer o outro é, antes de tudo, reconhecer a nós mesmos.

Há um tempo, em Safed, senti algo que não sei descrever sem usar as palavras da Cabala. Caminhando por aquelas ruas silenciosas, entre sinagogas e livros antigos, percebi a presença de uma energia que transcende o cotidiano. Era a consciência de que, na tapeçaria da existência, cada fio encontra seu outro fio, cada alma encontra sua centelha perdida. Pouco depois, a vida mostrou o sentido disso: um ano depois, em novembro, encontrei minha esposa. Não houve truques, coincidências ou atalhos. Houve reconhecimento, inevitável, silencioso, profundo.

O encontro da alma gêmea é, em essência, um tikun — não uma reparação de erros, mas a harmonia de algo que já existia antes do tempo. Cada gesto, cada palavra, cada silêncio compartilhado é a confirmação de que estávamos destinados a nos lembrar. E, no fundo, essa é a mais bela sabedoria da vida: a certeza de que, apesar da fragmentação, existe alguém que nos percebe na profundidade do que somos, que nos aceita sem que precisemos explicar, que nos vê sem tentar nos mudar.

E é nesse encontro que aprendemos a verdadeira essência do amor: não possessão, não dependência, mas contemplação, reverência e expansão da consciência. Porque a alma gêmea nos mostra que, ao encontrar o outro, também nos reencontramos. E, quando isso acontece, o mundo inteiro parece mais leve, mais iluminado, mais próximo do que poderia ser quando olhamos para ele com os olhos de quem sabe que, em algum lugar, a centelha perdida nos esperava.