Brasília tem um tipo humano que se reconhece à distância. Costuma chegar com o crachá pendurado no pescoço, mesmo quando não há controle de acesso. É o crachá invisível: cargos, títulos, vínculos institucionais — tudo meticulosamente mencionado na primeira conversa, como quem estende um cartão de visitas gravado em letras douradas. Ali, entre gabinetes e auditórios, esse tipo de pessoa prospera, porque sabe manejar a linguagem formal, as hierarquias, as pequenas cortes invisíveis que cercam o poder.
Conheci uma delas. Representava um órgão do governo e tinha formação em Direito, acompanhada de títulos que gosta de exibir com o mesmo zelo com que outros guardam joias de família. Recordo um telefonema, num dia qualquer, em que ela, imaginando falar com uma “simples secretária”, deixou o rigor se transformar em aspereza. Era autoritária, cortante, distribuía ordens como quem distribui cartões de estacionamento: mecânica e sem olhar nos olhos. O detalhe é que, meses depois, descobriu-se que aquela “secretária” não só não era secretária, como ocupava um espaço de influência muito diferente daquele que ela supunha.
O reencontro foi quase teatral. Em um evento comunitário, onde cargos nada valem, a mesma pessoa tornou-se cordial, sorridente, até afável. A necessidade de aprovação pairava no ar como um perfume doce demais, desses que denunciam o excesso. Já não havia ordens, apenas perguntas; não havia imposição, apenas tentativa de intimidade. Como um peixe fora d’água tentando se convencer de que o lago era seu, esforçava-se para ser parte de um ambiente que não se dobrava a títulos nem crachás.
Na Cabala, há uma lição antiga: o mundo se sustenta pelo equilíbrio entre Gevurah (o rigor) e Chesed (a bondade). O rigor é necessário, mas sem bondade torna-se dureza; a bondade é vital, mas sem rigor vira fraqueza. Quando uma pessoa aplica o rigor apenas sobre os que julga fracos e a bondade apenas para os que podem lhe trazer vantagem, ela quebra esse equilíbrio — e quebra também algo dentro de si.
Essa postura, tão frequente nos corredores de Brasília, nasce de insegurança e de um desejo constante de validação. É o paradoxo: ao tentar demonstrar poder, expõe-se a fragilidade. Quem conhece, mantém distância — não por desprezo, mas por serenidade. Pois, no fundo, essas pessoas travam batalhas que só elas conhecem, e às vezes o que se vê como arrogância é apenas medo disfarçado.
Talvez a Cabala tenha razão ao dizer que todo encontro é uma oportunidade de tikkun, de reparação. Mas essa reparação só começa quando a pessoa percebe que o verdadeiro reconhecimento não se compra, não se força, não se ostenta. Ele chega quando já não é mais necessário — e quando não há mais diferença entre o tom de voz usado para falar com um secretário ou com um embaixador. Porque, para quem alcança esse ponto, todo ser humano tem o mesmo valor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário