sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Brasília e o Teatro do Reconhecimento

Brasília tem um tipo humano que se reconhece à distância. Costuma chegar com o crachá pendurado no pescoço, mesmo quando não há controle de acesso. É o crachá invisível: cargos, títulos, vínculos institucionais — tudo meticulosamente mencionado na primeira conversa, como quem estende um cartão de visitas gravado em letras douradas. Ali, entre gabinetes e auditórios, esse tipo de pessoa prospera, porque sabe manejar a linguagem formal, as hierarquias, as pequenas cortes invisíveis que cercam o poder.

Conheci uma delas. Representava um órgão do governo e tinha formação em Direito, acompanhada de títulos que gosta de exibir com o mesmo zelo com que outros guardam joias de família. Recordo um telefonema, num dia qualquer, em que ela, imaginando falar com uma “simples secretária”, deixou o rigor se transformar em aspereza. Era autoritária, cortante, distribuía ordens como quem distribui cartões de estacionamento: mecânica e sem olhar nos olhos. O detalhe é que, meses depois, descobriu-se que aquela “secretária” não só não era secretária, como ocupava um espaço de influência muito diferente daquele que ela supunha.

O reencontro foi quase teatral. Em um evento comunitário, onde cargos nada valem, a mesma pessoa tornou-se cordial, sorridente, até afável. A necessidade de aprovação pairava no ar como um perfume doce demais, desses que denunciam o excesso. Já não havia ordens, apenas perguntas; não havia imposição, apenas tentativa de intimidade. Como um peixe fora d’água tentando se convencer de que o lago era seu, esforçava-se para ser parte de um ambiente que não se dobrava a títulos nem crachás.

Na Cabala, há uma lição antiga: o mundo se sustenta pelo equilíbrio entre Gevurah (o rigor) e Chesed (a bondade). O rigor é necessário, mas sem bondade torna-se dureza; a bondade é vital, mas sem rigor vira fraqueza. Quando uma pessoa aplica o rigor apenas sobre os que julga fracos e a bondade apenas para os que podem lhe trazer vantagem, ela quebra esse equilíbrio — e quebra também algo dentro de si.

Essa postura, tão frequente nos corredores de Brasília, nasce de insegurança e de um desejo constante de validação. É o paradoxo: ao tentar demonstrar poder, expõe-se a fragilidade. Quem conhece, mantém distância — não por desprezo, mas por serenidade. Pois, no fundo, essas pessoas travam batalhas que só elas conhecem, e às vezes o que se vê como arrogância é apenas medo disfarçado.

Talvez a Cabala tenha razão ao dizer que todo encontro é uma oportunidade de tikkun, de reparação. Mas essa reparação só começa quando a pessoa percebe que o verdadeiro reconhecimento não se compra, não se força, não se ostenta. Ele chega quando já não é mais necessário — e quando não há mais diferença entre o tom de voz usado para falar com um secretário ou com um embaixador. Porque, para quem alcança esse ponto, todo ser humano tem o mesmo valor.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Alma Gêmea: uma explicação mais profunda

Há coisas que não se explicam com palavras comuns. A alma gêmea é uma delas. A Cabala nos ensina que, antes de nos encarnar neste mundo, cada alma era uma centelha única, inteira e pura. Por um motivo que escapa à nossa compreensão, ela se fragmentou — dividida, mas nunca perdida. Cada pedaço carrega a lembrança daquilo que é completo, e a vida, com seus desvios e encontros, é o caminho de retorno.

Encontrar a alma gêmea não é acaso; é reconhecimento. Há pessoas que passam por nós sem deixar rastro. Outras chegam como quem atravessa a névoa do tempo e desperta algo que dormia há séculos. Não se trata apenas de afeição, nem de companhia. Trata-se de luz. Uma luz que nos mostra o que ainda não conhecíamos de nós mesmos. E, por isso, às vezes dói. Porque essa luz revela não só o que somos, mas o que deixamos de ser.

A alma gêmea é um espelho sem reflexo — não replica, não reproduz, não completa no sentido de preencher uma lacuna física ou emocional. Ela desafia, provoca, desperta. Ela nos lembra que a unidade nunca esteve fora, mas sempre dentro de nós, escondida atrás de máscaras, rotinas, distrações. E que reconhecer o outro é, antes de tudo, reconhecer a nós mesmos.

Há um tempo, em Safed, senti algo que não sei descrever sem usar as palavras da Cabala. Caminhando por aquelas ruas silenciosas, entre sinagogas e livros antigos, percebi a presença de uma energia que transcende o cotidiano. Era a consciência de que, na tapeçaria da existência, cada fio encontra seu outro fio, cada alma encontra sua centelha perdida. Pouco depois, a vida mostrou o sentido disso: um ano depois, em novembro, encontrei minha esposa. Não houve truques, coincidências ou atalhos. Houve reconhecimento, inevitável, silencioso, profundo.

O encontro da alma gêmea é, em essência, um tikun — não uma reparação de erros, mas a harmonia de algo que já existia antes do tempo. Cada gesto, cada palavra, cada silêncio compartilhado é a confirmação de que estávamos destinados a nos lembrar. E, no fundo, essa é a mais bela sabedoria da vida: a certeza de que, apesar da fragmentação, existe alguém que nos percebe na profundidade do que somos, que nos aceita sem que precisemos explicar, que nos vê sem tentar nos mudar.

E é nesse encontro que aprendemos a verdadeira essência do amor: não possessão, não dependência, mas contemplação, reverência e expansão da consciência. Porque a alma gêmea nos mostra que, ao encontrar o outro, também nos reencontramos. E, quando isso acontece, o mundo inteiro parece mais leve, mais iluminado, mais próximo do que poderia ser quando olhamos para ele com os olhos de quem sabe que, em algum lugar, a centelha perdida nos esperava.


domingo, 6 de dezembro de 2020

Blavatsky e a Maçonaria no Século XIX: Uma Revisitação Erudita e Esotérica

1. Blavatsky e a Reinterpretação da Tradição Maçônica

Helena Petrovna Blavatsky (1831–1891) ocupa um lugar singular na história do esoterismo moderno. Ao fundar a Sociedade Teosófica e publicar obras influentes como Ísis Sem Véu (1877) e A Doutrina Secreta (1888), ela inaugurou uma reinterpretativa síntese espiritual que buscava transpor os labirintos dogmáticos do Ocidente ao diálogo com uma Sabedoria Primordial de matriz universal. A sua relação com a Maçonaria — seja na forma de recepções honoríficas, na crítica à Maçonaria especulativa ou na proposição de formas sincréticas “orientais” — oferece um campo de análise ávido pela clivagem entre simbolismo ativado e institucionalismo reverente.

Nascida em 1831 na cidade de Yekaterinoslav, na atual Ucrânia, Blavatsky era filha de uma família aristocrática russa com forte tradição maçônica. Seu bisavô, Príncipe Pavel Dolgorukov, era membro do Rito de Estrita Observância, uma ordem maçônica alemã que alegava ligação com "Superiores Desconhecidos". Esse ambiente familiar propiciou-lhe o primeiro contato com o esoterismo ocidental, influenciando profundamente sua formação intelectual e espiritual.

Em 1877, logo após a publicação de Ísis Sem Véu, Blavatsky recebeu de John Yarker, líder do Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraim, um diploma honorífico — evidentemente sem a exigência de iniciação formal — conferindo-lhe um grau elevado por “seus humildes esforços”. O episódio gerou controvérsia: Blavatsky afirmou com veemência não ter passado pelos graus regulares das Lojas maçônicas ocidentais e, portanto, não ser uma maçom tradicional. Tal afirmação foi explicitada em uma carta publicada no Franklin Register em fevereiro de 1878, em que ela explicita: “não tomei os graus regulares em qualquer Loja Maçônica Ocidental... logo, não sou uma maçom de 33° grau”. Ainda assim, considerava legítima sua prerrogativa de utilizar o título concedido em função do prestígio recebido de “maçons do Oriente”.

Blavatsky via na Maçonaria moderna uma caricatura dos antigos Mistérios. Em Ísis Sem Véu (2:375), ela denuncia: “A Maçonaria professa ser a professora da verdadeira ética, mas degenerou em uma propaganda de teologia antropomórfica... O aprendiz descalço é dito que todas as distinções sociais são abandonadas na Loja, mas na prática, a Ordem lambe as botas de príncipes.” Ela contrastava isso com a "Maçonaria Oriental", que associou a fraternidades tibetanas e hindus, como o Sat B’hai — descrito por Yarker como uma sociedade de "estudo da filosofia indiana".

Blavatsky apoiou a posição do Grande Oriente da França, que substituiu a crença em um "Deus pessoal" por um "Princípio Criador" impessoal — alinhado à sua visão teosófica do Absoluto (Parabrahm). Já a Maçonaria inglesa, com seu "Grande Arquiteto do Universo", era acusada de "confundir o Demiurgo com o princípio último da Realidade".

Em 1878, Blavatsky e Olcott discutiram transformar a Sociedade Teosófica em uma ordem maçônica mista, inspirada no modelo de Cagliostro. O plano foi abandonado, mas a estrutura de "graus" (como o Esoteric Section) manteve ressonâncias maçônicas.

Após a morte de Blavatsky, Annie Besant adotou a Co-Maçonaria (Le Droit Humain), que admitia mulheres. Blavatsky já antecipara essa necessidade ao citar Sotheran em Ísis Sem Véu (2:388): “A Maçonaria Especulativa tem muito a fazer. Um de seus deveres é aceitar a mulher como colaboradora do homem na luta da vida.”

Algeo identifica "memes" comuns à Teosofia e à Maçonaria: Hierarquia Oculta: Os "Mestres" teosóficos ecoam os "Superiores Desconhecidos" do Rito de Estrita Observância. Símbolos: O selo teosófico (hexagrama com ankh) remete à Estrela de Salomão maçônica. Iniciação: Ambas as tradições usam ritos de passagem para transmitir "verdades indizíveis".

Blavatsky não foi uma maçom convencional, mas uma crítica e reformadora da tradição esotérica ocidental. Sua obra revela: Uma síntese entre Oriente e Ocidente: Ao defender que a Maçonaria moderna descende dos Mistérios Egípcios e Tibetanos. Uma crítica ao dogmatismo: Seja na Igreja ou nas Lojas "oficiais". Um legado prático: A Co-Maçonaria e a valorização do feminino no esoterismo. Como escreveu em A Doutrina Secreta (2:696): “A Maçonaria Antiga e Primitiva usa 000,000,000 como ano da Luz — um símbolo da eternidade incalculável.” Essa visão cíclica e não dogmática do tempo e do conhecimento continua a desafiar estudiosos do esoterismo hoje.


2Crítica à Maçonaria Moderna e Resgate da Tradição Primordial

Helena Petrovna Blavatsky (1831–1891) articulou uma crítica rigorosa à Maçonaria especulativa, particularmente à vertente inglesa, que, em sua visão, representava uma degeneração das tradições iniciáticas antigas e operativas. Em obras como Ísis Sem Véu (1877), Blavatsky denuncia a Maçonaria moderna como uma “propaganda de teologia antropomórfica”, na qual o discurso de igualdade entre iniciados cedia lugar a deferências sociais incompatíveis com o ideal de fraternidade universal (Blavatsky Trust, n.d.; HPB Narod, n.d.). Para ela, a Maçonaria institucionalizada havia perdido a potência operativa e ritualística das antigas ordens, mantendo apenas um resíduo simbólico que, embora respeitável, carecia do vigor espiritual da tradição primordial. Essa tradição primordial, que Blavatsky associa a correntes esotéricas globais, compreendia saberes cabalísticos e o legado dos “divinos maçons” que, segundo ela, ergueram templos pré-dilúvios, conferindo à estrutura simbólica da Maçonaria contemporânea um eco histórico sem eficácia iniciática direta.


A Sociedade Teosófica, fundada por Blavatsky em 1875 junto com Henry Steel Olcott, surgiu como um esforço de resgate da Sabedoria Primordial por meio de uma síntese entre ciência, religião e filosofia. Embora Blavatsky e Olcott tenham cogitado, em 1878, a criação de uma ordem maçônica mista inspirada em modelos como o de Cagliostro, essa proposta não se concretizou. Entretanto, a estrutura interna da Sociedade, em particular a seção esotérica (Esoteric Section), refletia ressonâncias maçônicas, mantendo graus simbólicos que evocavam a iniciação e o estudo oculto, sem, contudo, transformar a organização em uma ordem maçônica formal (Blavatsky, 1888).


Após a morte de Blavatsky, Annie Besant assumiu a liderança da Sociedade Teosófica e consolidou o vínculo entre teosofia e Co-Maçonaria. Besant integrou-se à Ordem Maçônica Mista Internacional Le Droit Humain, que admitia mulheres, articulando o acesso feminino à iniciação como parte de uma luta mais ampla por igualdade e fraternidade universal. Sob sua direção, foram fundadas lojas em países como Inglaterra, Índia e Brasil, onde os rituais maçônicos incorporavam ensinamentos teosóficos e símbolos orientais, promovendo um sincretismo espiritual coerente com os ideais de Blavatsky (Wikipedia, n.d.).


No contexto brasileiro, a influência da Co-Maçonaria teosófica foi particularmente significativa, manifestando-se em iniciativas de membros da Sociedade como Maria José de Castro e Carlos Dias Fernandes. Esses indivíduos fundaram lojas maçônicas, como a “Fraternidade” no Rio de Janeiro e a “Cosmos” em São Paulo, onde a integração de elementos do ocultismo oriental e referências à Doutrina Secreta exemplificava a proposta de unir diferentes tradições espirituais em um quadro de desenvolvimento moral e intelectual compartilhado. Tal experiência evidencia a continuidade e adaptação das ideias de Blavatsky, mostrando como a crítica à Maçonaria especulativa e a valorização da tradição primordial transcenderam sua obra escrita, influenciando práticas concretas de iniciação e organização espiritual em diversas regiões, sem jamais perder o rigor da reflexão filosófica e esotérica que caracterizou sua trajetória (Blavatsky Trust, n.d.; HPB Narod, n.d.; Wikipedia, n.d.).


3. Memphis-Misraïm, Cagliostro e a Dimensão Simbólica da Maçonaria Oriental: Entre Esoterismo e Operatividade


O Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraïm, fundado em 1881 pela fusão dos ritos de Memphis e Misraïm, representa um dos mais fascinantes experimentos da Maçonaria do século XIX. Composto por uma vasta gama de graus, muitos dos quais honoríficos, o rito incorporava elementos do hermetismo, da cabala e do misticismo egípcio, evocando uma tradição esotérica que remontava aos antigos mistérios de Ísis e Osíris.


Helena Petrovna Blavatsky, cofundadora da Sociedade Teosófica e uma das figuras mais influentes do esoterismo moderno, teve contato com o Rito de Memphis-Misraïm por meio de John Yarker, um dos principais divulgadores do rito na Inglaterra. Em 1877, Blavatsky recebeu de Yarker dois diplomas maçônicos honorários: o grau de Sat B’hai, associado a uma suposta fraternidade oriental indiana, e o grau feminino do Rito de Adoção, como "Princesa Coroada da Rosa-Cruz".


Embora reconhecesse a profundidade simbólica do Memphis-Misraïm, Blavatsky questionava sua eficácia espiritual, considerando-o "especulativo" e sem a força operativa das escolas orientais. Ela via a Maçonaria moderna, especialmente em sua vertente inglesa, como uma degeneração da tradição iniciática antiga e operativa. Em sua obra Ísis Sem Véu, Blavatsky denuncia a instituição como uma "propaganda de teologia antropomórfica", onde o discurso de igualdade entre iniciados cedia lugar a deferências sociais que contradizem o ideal de fraternidade.


Blavatsky associava a Maçonaria àquilo que chamava de tradição primordial, uma corrente esotérica antiga e global. Ao relacionar a Maçonaria com o cabalismo e o mistério dos "divinos maçons" que ergueram templos pré-dilúvios, ela concedia à estrutura maçônica moderna um rastro simbólico despido de potência operativa. Para ela, sem a união com a tradição primordial, a Maçonaria ocidental era um "cadáver sem alma".


O Rito de Memphis-Misraïm, com sua vasta gama de graus e sua ênfase no simbolismo egípcio, representava para Blavatsky uma tentativa de reconectar o Ocidente à tradição primordial. No entanto, ela via essa tentativa como superficial, sem a profundidade espiritual necessária para a verdadeira iniciação. Em contraste, ela acreditava que a verdadeira sabedoria se preservava no Oriente, em escolas esotéricas autênticas que possuíam o segredo vivo da iniciação.


Em resumo, a relação de Blavatsky com o Rito de Memphis-Misraïm ilustra sua crítica à Maçonaria especulativa e sua busca por uma tradição esotérica mais profunda e operativa. Ela via a Maçonaria moderna como uma sombra da verdadeira tradição iniciática, e sua obra procurava resgatar essa tradição primordial, integrando ciência, religião e filosofia em uma síntese espiritual universal.


4. Legado Sincrético: A Maçonaria na Obra de Helena Blavatsky e sua Reconfiguração Simbólica


Helena Petrovna Blavatsky, figura central no desenvolvimento do movimento teosófico, estabeleceu uma relação complexa e multifacetada com a Maçonaria, que transcendeu a mera adesão institucional para se configurar como um processo de reelaboração simbólica e crítica. Em suas obras, especialmente em Ísis Sem Véu (1877) e A Doutrina Secreta (1888), Blavatsky articulou uma visão da Maçonaria que, embora reconhecesse suas raízes esotéricas, apontava para uma degeneração da tradição iniciática original. Ela acusava a Maçonaria moderna, particularmente a vertente inglesa, de ter se afastado dos princípios operativos e espirituais dos antigos mistérios, transformando-se em uma "propaganda de teologia antropomórfica" . Essa crítica não se limitava a uma reprovação superficial, mas refletia uma análise profunda sobre a perda da essência espiritual e simbólica da Maçonaria, que, segundo Blavatsky, havia se tornado uma caricatura dos antigos mistérios.


No entanto, Blavatsky não se limitou a criticar; ela propôs uma reconfiguração simbólica da tradição maçônica. Influenciada por sua formação e experiências, incluindo sua relação com o Rito de Memphis-Misraïm, Blavatsky buscou integrar elementos das tradições esotéricas orientais, como o hermetismo, a cabala e os mistérios egípcios, à prática maçônica. O Rito de Memphis-Misraïm, com seus numerosos graus e simbolismos, foi visto por ela como uma tentativa de resgatar a profundidade esotérica perdida na Maçonaria ocidental. No entanto, Blavatsky também reconhecia as limitações desse rito, considerando-o "especulativo" e sem a eficácia espiritual dos ensinamentos orientais autênticos. Ela via nesse rito uma oportunidade de revitalizar a Maçonaria, mas alertava para a necessidade de um retorno às fontes espirituais vivas e operativas, em vez de uma mera acumulação de graus honoríficos sem substância espiritual real .


O legado de Blavatsky, portanto, não reside apenas em suas críticas à Maçonaria, mas em sua capacidade de reimaginar e ressignificar o simbolismo maçônico. Ela propôs uma tradição esotérica sincrética, que integrava elementos do Oriente e do Ocidente, do masculino e do feminino, do rito e da sabedoria primordial. Essa abordagem visava criar uma prática iniciática que fosse espiritualmente viva e operativa, capaz de transcender as limitações institucionais e dogmáticas da Maçonaria moderna. Ao fazer isso, Blavatsky não apenas preservou e transmitiu símbolos e ensinamentos esotéricos, mas também os revitalizou, oferecendo uma nova interpretação que buscava restaurar a profundidade espiritual e a eficácia transformadora dos antigos mistérios. Assim, sua obra representa uma tentativa de reconectar a Maçonaria com suas raízes espirituais originais, propondo uma tradição simbólica que fosse, ao mesmo tempo, universal e profundamente enraizada na experiência espiritual vivida.

5.Conclusão: Blavatsky como Ponte entre Tradições Esotéricas

Helena Petrovna Blavatsky emerge não como uma maçom convencional, mas como uma reformadora radical que utilizou o léxico maçônico para transcender limites institucionais e dogmáticos. Sua crítica à Maçonaria especulativa, o vínculo simbólico com ritos alternativos como Memphis-Misraïm e sua influência sobre a Co-Maçonaria evidenciam uma ousada tentativa de reinserir na tradição iniciática a vibração de uma sabedoria compartilhada, inclusiva e não dogmática. Blavatsky propôs uma reconfiguração simbólica que unia Oriente e Ocidente, homem e mulher, rito e sabedoria primordial, mostrando que, mesmo fragmentada pela secularização e por fronteiras nacionais, a tradição esotérica poderia ser reinterpretada e revitalizada.

Sua obra também revela uma visão cíclica e não dogmática do tempo e do conhecimento, como exemplificado em A Doutrina Secreta, na qual a Maçonaria Antiga e Primitiva é simbolizada pelo ano da Luz, um número incalculável que reflete a eternidade e a continuidade da sabedoria. Essa perspectiva desafia os estudiosos contemporâneos a reconsiderarem a função simbólica das ordens esotéricas e o papel da tradição iniciática frente às crises modernistas, demonstrando que a prática esotérica pode ser um elo entre o antigo e o novo.

Assim, a intersecção entre Maçonaria e a obra de Blavatsky constitui um campo fecundo para compreender as dinâmicas esotéricas, sociais e espirituais do século XIX. Co-fundadora da Sociedade Teosófica e autora de obras fundamentais como Ísis Sem Véu (1877) e A Doutrina Secreta (1888), Blavatsky posicionou-se como crítica e reformadora da Maçonaria ocidental, propondo uma síntese inovadora que articulava tradição e modernidade, ritual e filosofia, simbolismo e prática.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

A Interconexão Problemática: Cabala e Tarô como Sistemas Simbólicos em Diálogo Crítico

A Cabala, enraizada na mais profunda tradição mística judaica, apresenta-se não como mera disciplina intelectual, mas como uma tradição recebida (Kabbalah), um conhecimento interior transmitido de mestre a discípulo através dos séculos. Ela constitui, nas palavras do Rabi Yitschac Luria, a "alma da Torá", oferecendo uma estrutura cosmológica abrangente que desvela a essência divina, sua interação com o mundo e o propósito último da Criação. Como "Torá Interior" ou "Sabedoria da Verdade", ela fornece um mapa metafísico do universo e um guia para a retificação (Tikkun) pessoal e coletiva, convocando o estudante a um papel ativo neste processo cósmico. Este conhecimento esotérico, centrado na compreensão dos atributos divinos manifestos nas Dez Sefirot e nos caminhos interconectados da Árvore da Vida, transcende a razão discursiva, exigindo iniciação e prática contemplativa.

A tentativa de estabelecer correlações sistemáticas entre este sofisticado edifício cabalístico e o simbolismo do Tarô, contudo, emerge como um fenômeno predominantemente ocidental e tardio, datando essencialmente do século XIX com Eliphas Lévi. Este esforço hermenêutico concentrou-se quase exclusivamente na aplicação do esquema da Árvore da Vida – um diagrama composto por dez Sefirot (atributos divinos emanados) e vinte e dois caminhos (ligações entre as Sefirot, associadas às vinte e duas letras do alfabeto hebraico) – sobre a estrutura do baralho tarológico. Os paralelos propostos são, à primeira vista, sedutores: os vinte e dois Arcanos Maiores alinhariam às vinte e duas letras/caminhos; as dez cartas numeradas de cada naipe dos Arcanos Menores espelhariam as Dez Sefirot; e os quatro naipes corresponderiam aos Quatro Mundos cabalísticos (Azilut, Beriah, Yetzirah, Asiyah).

No entanto, uma análise crítica revela profundas dissonâncias e desafios epistemológicos nesta aproximação. Em primeiro lugar, a atribuição específica das letras hebraicas aos Arcanos Maiores carece de coerência interna e base tradicional sólida. A letra Guímel, por exemplo, associada tradicionalmente a Marte, riqueza/pobreza e a ligação entre Binah (Entendimento) e Gevurah (Rigor), contrasta radicalmente com interpretações tarológicas usuais para cartas como a Imperatriz (frequentemente ligada a Vênus e à fertilidade). Esta dissonância não é exceção, mas a regra, levando autores como G.O. Mebes a reinterpretar livremente os significados cabalísticos para forçar ajustes, criando assim um sistema híbrido distanciado das fontes judaicas. A própria estrutura interna do alfabeto hebraico no contexto da Árvore – organizada em três letras-mães (Alef, Mem, Shin), sete letras duplas e doze letras simples, com posições e funções específicas nos caminhos horizontais, verticais e diagonais – não encontra qualquer ressonância na sequência ou natureza dos Arcanos Maiores. Classificar o Mago, a Morte e o Louco como equivalentes às letras-mães, por exemplo, seria uma arbitrariedade sem fundamento na prática interpretativa do Tarô.


Em segundo lugar, o significado profundo das Sefirot é frequentemente esvaziado na transposição para o Tarô. As Sefirot não são meras categorias simbólicas ou arquétipos psicológicos; são atributos dinâmicos de Deus, cujos nomes e significados derivam diretamente de passagens bíblicas específicas (como a infusão de Espírito, Sabedoria e Inteligência em Betzalel para a construção do Tabernáculo, ou a oração de Davi nas Crônicas). Ler a carta 1 (O Mago) sem a perspectiva de Keter (Coroa) como Espírito e Vontade Divina transcendentes, ou a carta 2 (A Sacerdotisa) sem a dimensão de Hokhmah (Sabedoria) como Sabedoria Primordial do Pai Universal, significa perder a essência teológica e cosmogônica que as Sefirot carregam, reduzindo-as a alegorias decorativas. Os Quatro Mundos cabalísticos, representando níveis ontológicos distintos de emanação (do puramente divino ao material), possuem uma estrutura vertical e hierárquica que difere fundamentalmente da estrutura horizontal e funcional dos quatro naipes do Tarô (bastões, espadas, copas, ouros), originalmente ligados a estruturas sociais medievais e jogos de cartas orientais (naibs).

A origem histórica desta aproximação revela suas fragilidades. Ela surge no contexto do século XIX, impulsionada pelo romantismo, pelo orientalismo e pela busca de uma "Prisca Theologia" (teologia primordial) unificada, após descobertas linguísticas (como o parentesco indo-europeu) que inflamaram as especulações sincréticas. Eliphas Lévi, em "Dogma e Ritual da Alta Magia" (1856), foi o principal arquiteto desta correlação, partindo de uma mera analogia numérica (22 Arcanos, 22 letras; 40 cartas numeradas, 10 Sefirot x 4 mundos; 4 naipes, 4 mundos). Esta associação, no entanto, carecia de base histórica ou documental na tradição cabalística judaica. Os cabalistas judeus possuíam suas próprias e complexas tradições mânticas (astrologia, guematria, fisiomancia) e levavam a sério a proibição de imagens (segundo mandamento), tornando improvável qualquer ligação original com um sistema baseado em figuras como o Tarô, de origem europeia medieval e cristã, provavelmente vinculado à iconografia das catedrais, às cortes de amor provençais e à espiritualidade pré-peste negra.

A sequência dos Arcanos Maiores apresenta outro problema crucial para a integração cabalística. A numeração é uma adição tardia (século XVII), e sua interpretação como um caminho espiritual linear (seja maçônico, como em Mebes, ou cristão, como em Valentim Tomberg) é uma construção posterior, não intrínseca ao baralho original. Tentativas de enquadrá-la rigidamente na progressão dos caminhos da Árvore esbarram na ausência de uma estrutura correspondente e na natureza muitas vezes fragmentária e contextual da cartomancia prática, focada em demandas individuais concretas, em contraste com a abstração e universalidade do esquema cabalístico.

Conclui-se, portanto, que o diálogo entre Cabala e Tarô, tal como predominantemente estabelecido desde Lévi, constitui menos uma descoberta de raízes comuns e mais um constructo esotérico moderno. Ele reflete um desejo ocidental de legitimar o Tarô mediante sua vinculação a uma tradição antiga e prestigiada, mas frequentemente o faz à custa da distorção de ambos os sistemas. A força da Cabala reside em sua profundidade teológica, suas práticas meditativas complexas (como as permutações de letras de Abulafia) e seu enraizamento na história e textualidade judaica – dimensões frequentemente negligenciadas nas apropriações tarológicas. O Tarô, por sua vez, consolidou seu poder simbólico e mântico ao longo de séculos de uso independente, com um núcleo de significados emergente de sua própria iconografia e prática. Uma abordagem mais fértil e respeitosa exigiria, não a imposição forçada de correspondências, mas um estudo rigoroso e separado de cada tradição, reconhecendo suas origens distintas, seus contextos históricos específicos e suas linguagens simbólicas particulares. A verdadeira interconexão, se existir, residiria não em esquemas rígidos de equivalência, mas na percepção de padrões universais da experiência humana – como a luta entre luz e sombra, o processo de transformação e a busca de significado – que ambas as tradições, a seu modo único e autêntico, buscam iluminar. O valor da Árvore da Vida para o estudioso do Tarô talvez não esteja em um mapeamento literal, mas em sua potência como modelo de processos cósmicos e psíquicos, oferecendo uma linguagem para pensar a complexidade das relações e emanações, inspirando reflexões profundas sem exigir a fusão inconciliável de sistemas fundamentalmente diversos.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Racismo e desigualdade social: um debate ainda necessário.


A questão racial no Brasil e no mundo ainda é um assunto longe de ser resolvido. Na entrevista épica com o Prof. Hélio Santos podemos ter uma idéia de como o assunto era encarado anos atrás pela mídia e traçarmos uma comparação de como ele é visto hoje. Mudou muito? Há diferenças? Quais perspectivas temos? O que aprendemos e construímos desde então? Interessante notar que, pelo ano da entrevista, percebemos que não é um pleito recente, portanto, há muito o que se refletir a esse respeito.

Prof. Hélio Santos é Mineiro de Belo Horizonte, estudou e deu aulas muito tempo em São Paulo, onde se tornou doutor em Administração pela FEA-USP, até radicar-se em Salvador, Bahia, onde leciona hoje no Mestrado em Desenvolvimento Humano da secular Fundação Visconde de Cairu. Pesquisador da temática sociorracial no Brasil, Helio Santos é autor de A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso (Editora Senac, 2000), ensaio que discute o desenvolvimento do país sob a ótica sociorracial. Foi coautor de várias obras na sua especialidade e publica regularmente artigos sobre desenvolvimento humano e diversidade. É também consultor de gestão da diversidade de várias organizações, entre elas Itaú-Unibanco, Abril, CPFL e Ford Foundation.


Vale a pena conferir.


sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O Tempo que Respira

Quando éramos crianças, o mundo cabia na palma da mão. Brincávamos de ser grandes. Passávamos batom, vestíamos ternos de papel, comprávamos jornais que não sabíamos ler, apenas para parecer. O tempo parecia flutuar, paciente, invisível.

Depois veio a adolescência. E com ela a pressa. Falávamos alto para o mundo ouvir. Amávamos como se o amor fosse urgente. Cada livro era uma descoberta. Cada beijo, uma revelação. Achávamos que a vida adulta seria chegada. E, quando chegou, percebemos que o bom estava em nós, antes de sabermos o que era bom.

Tudo se tornou problema. Até respirar parecia responsabilidade. E as cobranças — ah, elas nunca foram embora. Só mudaram de voz. Comparações surgiam como sombras: o filho do vizinho, o irmão, o amigo. Queriam ajudar, talvez. Atrapalhavam, talvez. E quando atrapalhavam, talvez ajudassem.

O tempo não espera. Não pede licença. Às vezes corre, às vezes se arrasta. E nós, no meio, tentando segurar o que escapa. Hoje olho e não concordo. Mas talvez seja só hoje. Espero que ele não me prenda, que não me faça repetir dias sem fim.

Ser livre é esquecer o relógio. É não contar os dias. É existir sem medi-los. Felizes são aqueles que não se prendem às horas, que escutam o ritmo que vem de dentro e seguem-no, mesmo sem saber.

O tempo passa. Silencioso. Invisível. E nós, passageiros, respiramos dentro dele. Algumas vezes, só algumas, conseguimos estar inteiros, inteiros no instante, inteiros no tempo que passa sem nome.

domingo, 24 de outubro de 2010

A prece para achar a alma gêmea

Já compartilhei algo sobre isso antes, mas desta vez quero contar de uma forma mais detalhada, de dentro, como se fosse um desdobrar de pensamento e sentimento.

Cada pessoa que nasce neste mundo chega incompleta, metade de um inteiro. Dentro de cada um existe uma sensação de vazio, uma falta inexplicável, até encontrarmos a nossa alma gêmea. A importância desse encontro é essencial: é como se o mundo se completasse e tudo ganhasse sentido.

Se você se encontra sozinho e, de algum modo, não sente esse vazio, talvez seja hora de uma correção. O Tikunim — o Livro das Correções — nos guia nesse caminho, oferecendo ensinamentos sobre como alinhar nossas vidas para encontrar a alma destinada. Não se trata apenas de esperar: é sobre reconhecer que não podemos ser egoístas, que a energia que carregamos deve ser compartilhada e transformada pelo poder do amor. O verdadeiro amor, aquele que transcende a mera atração, é o que nos leva até a alma gêmea que nos completa.

O primeiro passo é acreditar, com todo o coração, que fomos destinados a encontrar essa alma. Há mais de dois mil anos, o Talmud já nos lembrava disso:

"Quarenta dias antes de uma pessoa ser concebida neste mundo, ela é anunciada no mundo espiritual: a filha deste homem está destinada a casar com este homem, a casa neste lugar será destinada para seu lar, e este campo (morada, negócio ou profissão) será destinado a esta pessoa." (Talmud Sota 2a.)

E então, a oração surge como um chamado íntimo, um pedido que brota do coração:

"Ribono Shel Olam, Mestre do Universo, esta é a lei espiritual do destino, a declaração foi feita antes de minha alma vir à Terra. Por favor, guie-me e ajude-me a encontrar o caminho certo para minha vida, o lar correto para viver. Eu realmente desejo encontrar minha alma gêmea; ajude-me a encontrar a alma gêmea destinada que declarei para mim no paraíso, 40 dias antes de ser concebido.
Por favor, Ribono Shel Olam, Mestre do Universo, encontre o caminho para mim onde não haverá outros caminhos, guie-me e coloque-me no caminho certo para o destino de minha alma, para que eu possa preencher minha vida com minha alma gêmea, que precisa de mim assim como eu a preciso dela. Pelo amor de minha alma gêmea, por favor ajude-me a encontrá-la, para que possamos ser apenas um juntos."

O costume é repetir essa prece três vezes ao dia. A essência não está nas palavras exatas, mas na emoção que as acompanha, na sinceridade do coração que pede ajuda divina para encontrar o destino traçado antes de chegarmos à Terra.

A paciência é parte do processo. O livro assegura que a espera não será maior que sete anos, mas cada momento é uma oportunidade de conexão, reflexão e crescimento interior. É recomendado, nesse caminho, ler semanalmente o capítulo 29 de Gênesis, que narra a história de Jacó e Raquel, o Salmo 121, e, para os homens, o “Eshes Chayil” ao menos uma vez por semana, na sexta-feira à tarde, antes do Kidush. Provérbios 31:10–31 também é uma leitura preciosa, cheia de sabedoria sobre virtude, amor e propósito.

Eu fiz isso. Rezei, mentalizei, senti o vazio que precisava ser preenchido, e me deixei guiar. E então, em 2013, viajei a Safed, cidade antiga e mística, onde cada rua parecia respirar história e cada pedra carregava a memória de séculos de espiritualidade. Ali, recebi bênçãos que pareciam tocar algo profundo em minha alma, como se o próprio tempo estivesse me preparando, silencioso, paciente.

E, no mesmo mês, mas um ano depois, em novembro de 2014, o destino se revelou com delicadeza e força: conheci minha esposa. Um encontro que não precisou de explicações, apenas se completou, e tudo o que antes parecia vazio encontrou seu lugar. É impossível esquecer a sensação de que cada oração, cada prece silenciosa, cada desejo sincero, tinha finalmente desaguado na realidade. A alma gêmea, enfim, se manifestou. (*este trecho acrescentei anos mais tarde ao texto original de 2010 para relatar que funcionou, ou seja, voltei do futuro para contar se dá certo ou não). 

Encontrar a alma gêmea é mais que um encontro; é a união de caminhos, destinos e energias, é a concretização de um plano espiritual antigo, anunciado muito antes de nascermos. É a descoberta de que, em algum lugar, há alguém que nos completa, assim como nós a completamos. E essa busca, quando feita com fé, amor e paciência, transforma não apenas nossas vidas, mas a própria forma como entendemos o mundo e a presença divina nele.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Entre a Luz e a Sombra do Coração

Fecho os olhos e penso no coração. Não só no meu, mas no de todos. No que pulsa escondido, silencioso, nos lugares que nem sempre conhecemos. Há portas que rangem, portas que se fecham sozinhas, portas que jamais abrimos. Há quartos com memórias, quartos com paixões, quartos com segredos que nem sabemos que existem. Mas há uma fresta. Sempre há uma fresta. Um fio de luz que atravessa a escuridão. Pequeno, tímido, quase invisível, mas insiste.

O mal existe. Às vezes parece enorme. Imenso. Intransponível. Mas ele não é absoluto. Nem aquele que machuca, que corta, que corrói, consegue apagar tudo. Sempre há um fio de bondade, mesmo se ele treme. Mesmo se ele hesita. Mesmo se quase não se percebe. Ele existe, escondido entre as intenções, entre o medo, entre o silêncio. Mas existe.

Não quero dizer que o mal é desculpável. Não é. Machuca, destrói, consome. Mas quando pensamos que alguém é só mal, esquecemos o que ainda pode ser. Esquecemos que, mesmo no pior gesto, mesmo no impulso mais sombrio, há fragmentos de luz. Fragmentos de bem que não se entregam, que resistem, que esperam. Pequenos, tímidos, mas persistentes.

O coração é traiçoeiro. Ele é paixão, impulso, urgência. Ele quer agora. Ele não espera. Ele é imediato, visceral, às vezes cego. A paixão é um braço de ferro invisível que nos segura na ponta de uma torre e depois nos lança ao chão. Quem decide com o coração se lança. Quem decide com o coração se esquece do tempo, se esquece da prudência, se esquece de si mesmo.

E a paciência? Paciência é um intervalo. Um espaço silencioso entre o impulso e o ato. Entre o sentir e o pensar. Entre o que queremos e o que deveríamos. É ali, nesse silêncio, que o bem pode florescer. Mesmo nos corações mais densos, mesmo onde a sombra parece absoluta. Ali, se olharmos com cuidado, há sempre algo que espera. Algo que pode ser resgatado. Algo que pode nos salvar — ou salvar outros.

A vida ensina, sempre de formas sutis, que somos pequenos. Pequenos, frágeis, quase invisíveis. Mas capazes. Capazes de mudar, de reparar, de escolher novamente. Cada gesto, cada ato, cada suspiro carrega uma oportunidade. Uma fagulha de bem que pode surgir. Frágil, quase imperceptível, mas real. Sempre real.

As paixões complicam. Elas nos cegam. Elas nos empurram. Elas nos fazem ferir sem perceber. Mas também nos fazem sentir. Sem elas, talvez não houvesse vida. O coração é instinto, é impulso, é vida pulsando. Mas se não houver reflexão, se não houver cuidado, o caminho se perde. E a bondade que poderia surgir se esconde.

A memória é um livro antigo. Algumas páginas estão em branco, outras rabiscadas. Algumas esquecidas, outras quase queimadas pelo tempo. Podemos reler, apagar, escrever de novo. Talvez seja ilusão. Talvez seja real. Mas é sempre possível. Sempre. Uma pequena chance. Uma oportunidade que parece mínima, mas que basta.

O bem e o mal se confundem. Nunca são separados. Nunca. Estão entrelaçados como raízes, como sombras que dançam na luz. O que parece mal pode conter bem. O que parece bem pode carregar sombra. Cada escolha é fio, cada gesto é chance, cada pensamento é espaço para resgatar ou perder.

Observar é aprender. Observar a si mesmo, observar os outros, observar o silêncio, observar a sombra e a luz. Esperar que o bem escondido tenha espaço. Que possamos agir com consciência, não só com impulso. Que possamos lembrar que a vida nos dá chances. Pequenas, frágeis, mas reais.

Mesmo no coração mais torto, há algo que resiste. Algo pequeno, tímido, silencioso. Algo que insiste em existir, mesmo quando tudo parece perdido. E isso já basta. Basta para acreditar. Acreditar que, mesmo na sombra, há luz. Que, mesmo nos impulsos, há oportunidade. Que, mesmo nos erros, há espaço para reparar.

E se fecharmos os olhos, de novo, veremos que cada coração, mesmo o mais quebrado, guarda algo que não pode ser destruído. Um fio, uma fresta, uma luzinha. Pequena, quase invisível. Mas suficiente. Suficiente para continuar. Suficiente para tentar. Suficiente para existir.

sábado, 2 de outubro de 2010

É, choveu...

chuva e dúvida

chuva para varrer a poeira da alma
chuva que escorre telhados e escuta as árvores
chuva que enche o lago de silêncio e sapos

ô chuva que chora do céu
chuva que cheira a areia molhada
que cheira a folhas verdes
que cheira a pássaros molhados
que cantam dentro do frescor

a água acorda meus pensamentos
desenrola meus dedos
me devolve coisas que eu nem lembrava
e faz meu coração balbuciar agradecimentos

vou pensando nela
vou pensando na outra
vou pensando na dúvida
na dúvida que se curva entre calor e frescor
na dúvida que às vezes arde
às vezes refresca

sei que o melhor amor
não é o que se mede
não é o que se explica
é o que se esconde na chuva
debaixo do cobertor
onde o mundo se encolhe
e só sobra o coração
e o silêncio que o coração entende

chuva que lava,
chuva que devolve,
chuva que deixa o corpo leve
e a alma molhada de sonhos


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Saiba diante de quem você está!

Da Lifnei Mi Atah Omed

Há frases que carregam consigo um peso silencioso, uma profundidade que só se revela quando nos encontramos diante delas, em silêncio e atenção plena. Uma delas, que sempre guardo comigo, é “Da lifnei mi atah omed”. Lembro-me de uma visita a uma sinagoga em Buenos Aires, onde essa frase estava grafada em destaque, sobre o armário que guarda o livro sagrado dos judeus, a Torah. Foi um encontro que me marcou profundamente.

A guia falava sobre a construção, sobre a história e o funcionamento da sinagoga, mas era a frase em hebraico que parecia ressoar em cada canto do espaço. Senti algo que nunca havia sentido com tanta intensidade: um respeito misturado a um temor reverente. Um medo que não era paralisante, mas que me lembrava da responsabilidade de cada pensamento, de cada ação. Ali, naquele salão sagrado, parecia impossível pensar em maldade ou agir de forma leviana. Lembro-me de ter saído de costas do salão principal, com cuidado, para não dar literalmente as costas a D’us, como se sentisse Sua presença pairando naquele lugar.

Curiosamente, não tive a mesma experiência ao visitar igrejas nos domingos de missa. Vi crucifixos, imagens e vitrais, mas a sensação de reverência que senti naquela sinagoga foi única. Ali, olhando para o vitral no alto da cúpula, que parecia proteger e iluminar a frase, senti algo que ia além do intelecto: uma presença silenciosa, mas poderosa, que lembrava que somos sempre observados, sempre convidados a refletir sobre nossas escolhas.

O mais fascinante é que “Da lifnei mi atah omed” está presente em quase todas as sinagogas que já visitei. Porém, naquele dia, naquele espaço específico, senti o sentido da frase com uma clareza quase física. Era como se cada letra em hebraico estivesse viva, lembrando-me da importância de estar consciente, de agir com integridade, de lembrar que nossas atitudes têm consequências que transcendem o imediato.

Essa experiência me levou a uma reflexão mais ampla, além do contexto judaico. Independentemente da religião que seguimos, acredito que o sentimento de reverência, de respeito e de admiração por D’us ou pela Energia Criadora é universal. Todos nós, em algum nível, dirigimos nossos pensamentos a uma força maior, Protetora, a quem devemos tudo o que somos e temos. Talvez, no fundo, todas as tradições espirituais estejam nos convidando a reconhecer essa presença, a respeitá-la e a viver de acordo com ela, conscientes de que cada gesto, cada pensamento, tem peso e significado.

Da lifnei mi atah omed: diante de quem você está, lembre-se. Uma frase simples, mas de profundidade infinita. Um lembrete de que a vida se constrói não apenas em ações visíveis, mas também na consciência e no cuidado com a energia que emanamos e recebemos. E, quando nos permitimos sentir isso plenamente, a experiência deixa de ser apenas ritual ou costume: torna-se um momento de encontro íntimo, de reconhecimento daquilo que nos transcende e nos sustenta.