segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Saiba diante de quem você está!

Da Lifnei Mi Atah Omed

Há frases que carregam consigo um peso silencioso, uma profundidade que só se revela quando nos encontramos diante delas, em silêncio e atenção plena. Uma delas, que sempre guardo comigo, é “Da lifnei mi atah omed”. Lembro-me de uma visita a uma sinagoga em Buenos Aires, onde essa frase estava grafada em destaque, sobre o armário que guarda o livro sagrado dos judeus, a Torah. Foi um encontro que me marcou profundamente.

A guia falava sobre a construção, sobre a história e o funcionamento da sinagoga, mas era a frase em hebraico que parecia ressoar em cada canto do espaço. Senti algo que nunca havia sentido com tanta intensidade: um respeito misturado a um temor reverente. Um medo que não era paralisante, mas que me lembrava da responsabilidade de cada pensamento, de cada ação. Ali, naquele salão sagrado, parecia impossível pensar em maldade ou agir de forma leviana. Lembro-me de ter saído de costas do salão principal, com cuidado, para não dar literalmente as costas a D’us, como se sentisse Sua presença pairando naquele lugar.

Curiosamente, não tive a mesma experiência ao visitar igrejas nos domingos de missa. Vi crucifixos, imagens e vitrais, mas a sensação de reverência que senti naquela sinagoga foi única. Ali, olhando para o vitral no alto da cúpula, que parecia proteger e iluminar a frase, senti algo que ia além do intelecto: uma presença silenciosa, mas poderosa, que lembrava que somos sempre observados, sempre convidados a refletir sobre nossas escolhas.

O mais fascinante é que “Da lifnei mi atah omed” está presente em quase todas as sinagogas que já visitei. Porém, naquele dia, naquele espaço específico, senti o sentido da frase com uma clareza quase física. Era como se cada letra em hebraico estivesse viva, lembrando-me da importância de estar consciente, de agir com integridade, de lembrar que nossas atitudes têm consequências que transcendem o imediato.

Essa experiência me levou a uma reflexão mais ampla, além do contexto judaico. Independentemente da religião que seguimos, acredito que o sentimento de reverência, de respeito e de admiração por D’us ou pela Energia Criadora é universal. Todos nós, em algum nível, dirigimos nossos pensamentos a uma força maior, Protetora, a quem devemos tudo o que somos e temos. Talvez, no fundo, todas as tradições espirituais estejam nos convidando a reconhecer essa presença, a respeitá-la e a viver de acordo com ela, conscientes de que cada gesto, cada pensamento, tem peso e significado.

Da lifnei mi atah omed: diante de quem você está, lembre-se. Uma frase simples, mas de profundidade infinita. Um lembrete de que a vida se constrói não apenas em ações visíveis, mas também na consciência e no cuidado com a energia que emanamos e recebemos. E, quando nos permitimos sentir isso plenamente, a experiência deixa de ser apenas ritual ou costume: torna-se um momento de encontro íntimo, de reconhecimento daquilo que nos transcende e nos sustenta.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

"De grão em grão a galinha enche o papo"

Lendo mais algumas pérolas do Rabi Yehoshiahu Pinto, cuidadosamente traduzidas por Paulinho Rosenbaum, deparei-me novamente com um ensinamento que, à primeira vista, parece simples, quase trivial. Muitas vezes ouvimos expressões como “de grão em grão a galinha enche o papo” e as descartamos como clichês, frases gastas de sabedoria popular que repetimos sem perceber. No entanto, se nos detivermos por um instante e prestarmos atenção, veremos que, por trás da simplicidade, há uma profundidade surpreendente. Como em toda lição verdadeira, a grandeza está na sutileza.

O Rabi nos lembra, ainda que de forma indireta, que a paciência é uma ferramenta essencial para qualquer aspecto da vida. Paciência, aliada ao tempo, nos oferece respostas que a pressa jamais revelaria. É a acumulação constante, silenciosa e discreta de pequenos esforços, de pequenas conquistas, que nos conduz a grandes resultados. O conhecimento, por exemplo, não se absorve de imediato; cada fragmento de aprendizagem que incorporamos, por menor que pareça, contribui para um acúmulo que, ao longo do tempo, transforma profundamente nossa compreensão do mundo.

Essa lógica se aplica a tudo na vida. Nada que valha a pena é construído da noite para o dia. Um planejamento de longo prazo, sólido e bem pensado, é o que sustenta as verdadeiras políticas, as carreiras duradouras, os negócios que prosperam e, até mesmo, as relações humanas que florescem. Políticas imediatistas, por outro lado, muitas vezes apenas tapam buracos, e podem até agravar os problemas que pretendem resolver. Olhemos, por exemplo, para o Japão: um país cuja paciência se reflete na excelência de suas obras, na persistência de seus projetos e no respeito quase ritual pelo tempo necessário para que as coisas se consolidem. Cada resultado ali é a soma de pequenos esforços, repetidos com precisão e disciplina.

Por isso, volto a repetir a frase aparentemente simples: “de grão em grão a galinha enche o papo”. É um convite à paciência, à perseverança, à confiança no tempo e no processo. Tudo que almejamos — aprovação em um concurso, o sucesso de um relacionamento, a construção de uma família, a compra de uma casa ou a concretização de um negócio — depende de acumularmos, passo a passo, nossos “grãos”. Cada ação cotidiana, por menor que pareça, é um tijolo na construção de algo maior.

E aqui surge outro ponto que talvez passe despercebido à primeira vista: o significado espiritual dessa metáfora. O ensinamento não se limita à necessidade prática de paciência; ele nos lembra que a vida da alma também segue um processo semelhante. Assim como a galinha precisa de grãos, a alma precisa de alimento espiritual, de experiências, aprendizados e reflexões, que se acumulam silenciosamente até que nos sintamos completos. A paciência e o tempo não apenas nos ensinam a conquistar o mundo exterior, mas a nutrir nosso mundo interior.

Portanto, a lição é dupla: cultivar a perseverança no plano material e cultivar o alimento da alma no plano espiritual. Com atenção aos pequenos passos, com paciência para respeitar o tempo de cada processo, veremos que pequenos desejos se transformam em grandes sonhos, e que a vida, quando vivida com constância e cuidado, revela frutos que a pressa jamais alcançaria.

De grão em grão, aprendemos que nada se perde, tudo se transforma. Cada esforço conta, cada momento importa, e cada passo dado com paciência nos aproxima daquilo que realmente almejamos — seja no mundo exterior, seja no universo interior que carrega nossas verdadeiras riquezas.

sábado, 18 de setembro de 2010

Andemos com pessoas melhores que a gente, pois nada vem sem esforço

Volto a folhear o livro de Rabi Yehoshiahu Pinto, traduzido com sensibilidade por Paulinho Rosenbaum. O título, Pérolas, já anuncia a preciosidade contida em cada página. Não se trata de um texto apenas para ler, mas de um convite para aprender, refletir e, sobretudo, despertar a alma. Cada ensinamento ressoa como um sussurro antigo, lembrando-me, por vezes, das palavras de Rabbi Nachman de Breslov e de outros mestres que pontuam minhas leituras, quando o tempo, generoso ou escasso, permite-me esses instantes de pausa.

Minha mãe tinha o costume de dizer: “ande com pessoas melhores do que você”. Na época, parecia apenas um conselho prático. Hoje, percebo sua profundidade. Andar com aqueles que nos superam em sabedoria, talento ou caráter é, em essência, um convite ao crescimento. Mas também carrega um risco silencioso: a comparação constante. Quando nos colocamos lado a lado de alguém mais capaz, é fácil sentir-se inferior, e muitas vezes essa sensação desperta uma competição interna que nos desgasta. É um paradoxo sutil da vida — buscamos inspiração, mas, ao mesmo tempo, podemos nos perder na sombra do outro.

O que Rabi Yehoshiahu Pinto propõe, com clareza serena, é semelhante, mas mais refinado: ele nos convida a procurar a companhia de estudiosos, daqueles que cultivam a sabedoria, não para medir forças, mas para absorver ensinamentos. Ele lembra que o aprendizado profundo não é imediato; é o tempo, paciente e constante, que nos conduz a uma conduta mais equilibrada, a uma vida mais consciente. A sabedoria, afinal, não se impõe, ela se conquista. E se nos dispusermos a escutá-la, mesmo lentamente, descobrimos caminhos que antes nos escapavam.

Essa reflexão não se limita ao estudo ou à espiritualidade. Serve para qualquer esforço humano. Não se constrói uma fortuna, uma carreira sólida ou uma realização pessoal significativa em um único dia. Tudo exige dedicação, paciência e constância. Pequeno esforço gera pequena recompensa; grande esforço, grande recompensa. O imediatismo da vida moderna muitas vezes nos ilude, fazendo-nos acreditar que tudo pode ser rápido, que resultados devem aparecer instantaneamente. Mas é justamente nesse lapso entre a expectativa e a realidade que o verdadeiro aprendizado se revela.

Aprender a valorizar o esforço prolongado, o caminho longo e silencioso, é perceber que cada pequena vitória carrega consigo o peso do trabalho realizado, das horas dedicadas, das tentativas e erros que moldam o caráter. É reconhecer que o sucesso, quando finalmente alcançado, é mais saboroso não apenas pelo resultado em si, mas por tudo que foi necessário para conquistá-lo.

Voltando às palavras de minha mãe e de Rabi Yehoshiahu, percebo que há uma diferença sutil, porém decisiva. Minha mãe falava em andar com “pessoas melhores do que eu”, um conselho que pode, inadvertidamente, estimular comparações nocivas. Rabi Yehoshiahu sugere andar com “estudiosos”, ou melhor, com aqueles que cultivam sabedoria. O enfoque não está na comparação, mas no aprendizado. Não se trata de medir forças ou capacidades, mas de abrir espaço para que o espírito absorva aquilo que ele ainda não conhece. É uma sutileza importante: a diferença entre competição e aprendizado, entre ansiedade e paciência, entre olhar para fora e olhar para dentro.

Outro ponto que merece atenção é a valorização das nuances e detalhes. A vida está repleta de sutilezas que muitas vezes passam despercebidas. Uma palavra, um gesto, uma escolha aparentemente insignificante pode alterar o curso de nossos caminhos. Estar atento a esses detalhes, cultivando a percepção e a sensibilidade, é parte essencial do que chamamos de sucesso. Não apenas o sucesso material, mas o sucesso humano, aquele que se traduz em paz de espírito, em integridade e em harmonia com o mundo ao redor.

E, por fim, há um convite implícito no livro de Rabi Yehoshiahu, que ecoa também na sabedoria de minha mãe: cercar-se de pessoas sábias, aprender com elas, absorver suas experiências e refletir sobre suas palavras. Mas fazer isso sem pressa, sem competição, sem ansiedade. Com atenção plena às nuances, aos detalhes, àquilo que o tempo revela e a paciência nos permite compreender. Pois a vida, em sua complexidade, não se resume a uma série de metas rápidas, mas se constrói nos intervalos silenciosos, nos pequenos gestos, nos aprendizados discretos que, pouco a pouco, transformam o caráter e abrem caminho para a verdadeira realização.

Esta é a mensagem que deixo hoje: busque a companhia dos sábios, valorize o esforço constante, perceba os detalhes e respeite o tempo do aprendizado. Nessa sintonia, encontraremos não apenas sucesso, mas também serenidade, compreensão e a delicada, porém profunda, sensação de estar caminhando na direção certa.

O dia do perdão

Hoje, para nós, judeus, foi o Dia do Perdão. Um dia de introspecção, silêncio e jejum. Não há festa, não há música; há apenas a pausa necessária para olhar para dentro, para nossas atitudes, ações e decisões do ano que passou. É um dia em que sentimos que D'us nos observa, nos avalia, e nos convida a refletir.

Mas não devemos guardar toda a consciência de nossas falhas para um único dia. O verdadeiro exercício da vida é melhorar continuamente — ser mais justo, mais gentil, mais atento, a cada ano, a cada dia. Ser melhor para nós mesmos e para os outros.

Fazer caridade, estender a mão a quem precisa, é talvez a forma mais concreta de purificação. Existe, na tradição, o kaparot, o costume de transferir simbolicamente os pecados para um galo ou uma galinha, oferecendo o animal em sacrifício. Não compreendo completamente o rito, e confesso que prefiro outra forma de reparação: a caridade, a doação consciente, que não prejudica ninguém e que transforma o mundo à nossa volta.

Neste dia, sinto também a necessidade de pedir desculpas. A todos. Sem orgulho, sem condições, sem esperar nada em troca. Perdoar é um ato de liberdade. Perdoar nos alivia, nos dá leveza. Basta tentar. E assim, eu peço: desculpem-me pelas minhas falhas, pelos meus exageros, pelos momentos em que falhei comigo mesmo ou com vocês. Estou pronto para aprender, para consertar, para melhorar.

Que este exercício não fique apenas no hoje. Que nos próximos dias, meses e anos, possamos dedicar mais tempo à alma, menos ao que é material, mais ao que é eterno. Que possamos nos tornar pessoas melhores, mais conscientes, mais presentes. Um único dia no ano já nos lembra do essencial: que podemos estar mais perto do Criador, e, ao mesmo tempo, mais próximos de nós mesmos.

Perdoem-me, e tentem perdoar também. Tentem sentir essa leveza. Porque, no fim, é assim que vivemos melhor — com o coração mais leve, com a alma mais plena, e com a certeza de que sempre podemos tentar novamente.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Ciberengenharia Social

Há muito tempo não me sentia verdadeiramente chocado com uma teoria. Chocado no sentido mais encantado do termo: surpreso, emocionado, inquieto. Hoje à noite, durante uma conversa que se estendeu pela memória de antigas amizades, um amigo me apresentou à ciberengenharia social. Um conceito complexo, quase fora do meu alcance imediato, mas que me capturou de tal maneira que ainda ecoa em meus pensamentos.

A teoria, desenvolvida há décadas pelo futurista Jacque Fresco, propõe algo audacioso: transformar a sociedade caótica e desigual em que vivemos em um ambiente sustentável, organizado e compartilhado, livre de governos, partidos ou qualquer forma tradicional de autoridade política. Seu argumento central é que a paz duradoura e a eliminação das desigualdades só seriam possíveis ao substituir o sistema monetário por um sistema baseado em recursos.

Minha primeira impressão foi a de um anarquismo futurista, quase um socialismo pós-moderno em versão high-tech. Mas, à medida que ouvi as explicações e observei imagens do projeto, percebi a profundidade da ideia. Trata-se de gerenciar recursos naturais com inteligência, preservar o meio ambiente, garantir igualdade e liberdade — sem guerras, sem disputas de poder, sem a moeda que hoje rege nossas vidas. Alguns desenhos, aliás, evocam lembranças de Atlântida, ou de cidades impossíveis, como se fossem concebidas em planetas distantes, por seres capazes de imaginar uma civilização sem escassez.

Ainda estou explorando o assunto. Não li tudo, nem compreendi todos os detalhes. Mas o essencial do Venus Project – Beyond Politics, Poverty and War é claro: um planeta sustentável, administrado por tecnologia avançada, onde o acesso a recursos e benefícios é universal. Um lugar onde a diversidade, o credo, a raça e a individualidade coexistem com igualdade, sem que disputas políticas ou econômicas corrompam a vida coletiva.

É uma ideia ousada, quase utópica, mas que merece atenção. Talvez precisemos, como espécie, de teorias assim: radicais, complexas, mas fundamentadas em moderação e respeito à natureza. Se queremos sobreviver e prosperar, é preciso imaginar o impossível — e, às vezes, começar a caminhar nessa direção.

Para quem quiser explorar, o projeto está aqui: The Venus Project. Não é apenas uma teoria: é um convite a repensar o mundo, a vida e o futuro.

domingo, 12 de setembro de 2010

A pressa é inimiga da perfeição

Estava folheando o novo livro traduzido por Paulinho Rosenbaum, Pérolas de Yehoshiahu, do Rabi Yehoshiahu Pinto, quando me deparei com o primeiro texto do compêndio, que trata do tempo e de seus poderes silenciosos, mas inexoráveis. E, de repente, percebi que há sabedoria em cada segundo que passa, em cada momento que se deixa correr.

O Rabi afirma, com uma certeza que impressiona, que “para tudo, o melhor é o tempo”. Para a perda de um ente querido, para a cura de uma doença, para a superação de qualquer acontecimento — o tempo sempre ajuda, sempre supera, sempre transforma. É um mestre paciente que não se cansa, que não julga, que não se apressa.

E há, ainda, a lição de que com paciência, esforço e calma podemos alcançar o impossível, o difícil, o que às vezes parece inalcançável. Uma verdade simples, porém profunda: tudo que vem fácil vai fácil. Sem esforço, nada se valoriza; sem dificuldade, o prazer se dissipa. O tempo é o escultor de nossas conquistas, o alquimista que transforma pequenas tentativas em resultados duradouros, o guardião que mede o esforço e aprimora o sabor de cada vitória. Savlanut, bevacashá — paciência, com persistência!

Ao refletir sobre essas ideias, percebo que a paciência, a verdade, a pressa, a calma e a dor estão intrinsecamente conectadas. Somente o tempo tem a força de acalmar a dor, de dar sentido ao esforço, de conceder a vitória merecida. Nenhum sucesso obtido sem luta é verdadeiramente completo; nenhuma alegria é genuína se não se esperou, se não se trabalhou por ela.

Ainda tenho muito pouco tempo para estudar mais a fundo essas ideias, e talvez minha explicação não faça justiça à profundidade do Rabi. Mas é justamente essa percepção: a de que devemos sempre retornar a temas como este, repensá-los, revisitá-los, como se o tempo fosse um livro que se escreve em páginas sucessivas, revelando gradualmente suas pérolas.

domingo, 5 de setembro de 2010

Papa Giovanni XXIII e o destino da Paz Mundial

Pessoas boas permanecem na memória. Creio nisso com todo o coração, e espero que mais pessoas sigam esse caminho. João XXIII era assim — bom. Tão bom que ficou conhecido como o “Papa Bom”. Assumiu o papado após o período conturbado de Pio XII, um tempo marcado por guerras, silêncios e escolhas difíceis. Não importa aqui discutir se ajudou ou atrapalhou os judeus — importa que sua bondade deixou uma marca.

A Igreja sempre me pareceu um território de mistérios. Cresci estudando seus caminhos tortuosos, refletindo sobre episódios como a Inquisição e sobre as sombras do passado, como a juventude de Bento XVI sob o regime nazista. Ainda assim, o pontificado de João XXIII me trouxe algo diferente. Mesmo doente, sustentou a visão de um novo Concílio, ousou abrir o diálogo entre as religiões e reformou ritos antigos.

Ele aboliu o latim obrigatório da missa, tornando o sermão compreensível a todos. Mas penso, com um certo pesar, que talvez tenha perdido um elo que unia os fiéis: a língua antiga, compartilhada, que carregava séculos de história e devoção. No judaísmo, oramos em hebraico; no islamismo, em árabe. Mesmo sem compreender cada palavra, sentimos a continuidade, a raiz da tradição. Essas línguas antigas nos conectam, nos lembram de quem fomos e quem somos.

Não sei se a mudança foi um erro ou um acerto completo. Mas sei que João XXIII acertou ao abrir as portas ao diálogo. Ao dizer que as religiões deveriam conversar, buscar a paz, ensinar a humanidade a se olhar com respeito, ele tocou o essencial.

Sonho com um mundo em que nossas diferenças não fragmentem a fé, mas nos fortaleçam. Um mundo em que cristãos, judeus e muçulmanos possam dialogar sem divisões internas, em que cada tradição respeite sua essência sem rivalidades. E um mundo em que todos os outros — ciganos, budistas, hinduístas, todos os filhos e filhas da Terra — também encontrem seu espaço de dignidade.

A paz absoluta talvez exista apenas nos textos de Platão, ou nas palavras de Yeshua ben Yossef. Mas podemos cultivá-la na vida concreta: respeitando o outro, reconhecendo sua existência, protegendo sua voz. Só assim o ciclo da bondade e da justiça continua, intacto e eterno.

Salve, João XXIII, in memoriam.