domingo, 29 de agosto de 2010

Viva, Eterna Etta James

Ouço muito essa frase na minha vida e, aos poucos, percebo que ela se tornou minha. Talvez seja sinal de que caminho mais no tempo e no espaço, mais atento aos ecos do que fui e ao perfume do que ainda posso ser. Hoje, a lembrança chegou através de uma música. Uma daquelas que, quando toca, parece abrir portas para a infância, para a adolescência, para dias que eu julgava perdidos. A canção é de Etta James — magnífica, única, impossível de repetir. “I’d Rather Go Blind”.

A música foi escrita por Ellington Jordan e Billy Foster, gravada pela primeira vez por Etta, em 1969. Hoje, outras vozes tentam interpretá-la, mas sinto uma pontada de dor quando alguém acredita que é novidade ou que pertence a um artista da moda. É como se o tempo esquecesse a intérprete original, e isso me entristece. Felizmente, ainda existe espaço para reverência: tenho meu blog, minha pequena torre de memória, onde o mérito de Etta James é celebrado, como sempre será.

A tradução da letra deixo para quem quiser se perder nela. É uma canção que nos faz lembrar, sofrer, suspirar por alguém que a vida não nos permitiu ter ou, quem sabe, se apaixonar novamente, apenas pelo som de uma voz que toca o coração com simplicidade e majestade. Difícil resistir ao timbre, à emoção crua, à intensidade com que Etta canta. A sorte é que temos o YouTube, onde podemos buscá-la, ouvi-la, vê-la, sentir a grandeza de sua presença.

Para mim, o vídeo mais inesquecível é aquele em que ela divide o palco com o estupendo Dr. John, em um show comandado por B.B. King e outros gigantes — Eric Clapton, Stevie Ray Vaughan, Phil Collins. A canção é linda; o espetáculo, magnífico. Palavras parecem pequenas diante de tanta arte. Só resta admirar, deixar-se levar, reconhecer que, em momentos assim, o tempo se curva e nos permite tocar a eternidade através de uma voz.

E então digo, com toda a alegria e reverência que a vida comporta: viva, eterna Etta James!

sábado, 28 de agosto de 2010

O Amor, a Compreensão e a Tolerância como atributos espirituais

Amor, compreensão e tolerância são três palavras que, em sua essência, parecem se complementar e convergir para significados muito próximos. Essas virtudes não são triviais; elas caracterizam um ser espiritualmente evoluído. Encontrar uma pessoa que manifeste essas três qualidades de forma plena é raro. Aqueles que as incorporam podem ser considerados “justos”, ou Tsadik, no hebraico: indivíduos humildes de corpo e alma.

Minha reflexão sobre essas virtudes é pessoal e, reconheço, limitada. Não possuo domínio sobre os numerosos mistérios ligados aos níveis da alma, aos conceitos espirituais da Cabalá ou à Árvore da Vida. Ainda assim, busco compartilhar um entendimento próprio sobre o amor, a compreensão e a tolerância, na perspectiva espiritual.

Essas virtudes me remetem, primeiramente, ao casamento. Um relacionamento conjugal só existe e se mantém quando fundamentado em amor genuíno, compreensão e tolerância. Somente ao abdicar de nossas vontades conseguimos compreender, amar e aceitar o outro — nossa alma gêmea. Assim, o casamento transcende a esfera material e física, alcançando um nível espiritual onde duas almas se tornam uma só, compartilhando em harmonia o amor, a compreensão e a tolerância. Este, talvez, seja um exemplo concreto de como essas virtudes podem ser consideradas atributos espirituais.

No entanto, o amor não se restringe à relação entre casais. Ele se manifesta também na relação entre pais e filhos, amigos e, especialmente, no amor ao próximo — a forma mais elevada de amor espiritual. Quando amamos verdadeiramente uns aos outros, evitam-se conflitos familiares, desavenças entre amigos, disputas políticas, confrontos religiosos e até guerras. Platão chamou essa realidade de “utopia”, algo quase impensável em nossa sociedade atual, marcada por dificuldades nas relações humanas. A ausência de amor ao próximo, talvez, seja um dos maiores obstáculos à paz duradoura no mundo.

A espiritualidade nos remete à alma e ao aperfeiçoamento do espírito. Praticar o amor incondicional ao próximo eleva nossa alma, afastando-nos da materialidade e das disputas do mundo físico. O amor, portanto, é um veículo de elevação espiritual e conexão com o divino.

A compreensão, por sua vez, está intrinsecamente ligada ao amor e à tolerância. Compreender é abrir mão de interesses individuais e se preocupar genuinamente com o outro, importando-se com sua essência. Essa virtude se aproxima do conceito de Tsedaká na tradição hebraica, frequentemente traduzido como caridade, mas cujo sentido real é justiça social. Compreender significa empenhar-se em promover justiça, seja na família, na comunidade ou no mundo, e não se limita à doação de recursos materiais. É agir com atenção, empatia e responsabilidade social, exercendo a verdadeira justiça em prol do próximo.

A tolerância, finalmente, complementa o trio de virtudes. Ela não consiste meramente em suportar adversidades, mas em respeitar as diferenças e compreender as dificuldades do outro. Esta é talvez a virtude mais desafiadora, pois exige aceitar realidades, costumes, aparências e crenças diferentes das nossas. A intolerância gera preconceito e injustiça, reforçando a necessidade de compreender, amar e praticar a justiça social simultaneamente. Assim, essas três virtudes são pilares indissociáveis de qualquer conduta ética e espiritual.

O estudo dessas virtudes revela uma grandeza singular: embora distintas em aparência, são essencialmente interdependentes e convergem para a mesma essência humana. A busca pelo amor ao próximo, pela compreensão e pela tolerância enriquece espiritualmente e aproxima o ser humano do ideal de justiça e bondade. O indivíduo que as pratica plenamente pode ser considerado um Tsadik, um justo.

Cabalisticamente, poderíamos aprofundar ainda mais a análise dessas virtudes. A letra Tsadi, presente em Tsadik e Tsedaká, simboliza a fé dos corretos e remete a conceitos elevados que conectam amor, compreensão, tolerância e justiça social. Ainda que não me aventure a explorar plenamente essa dimensão, é possível notar a inter-relação dessas virtudes com a fé e a esperança, elementos essenciais para a evolução espiritual.

Em última análise, respeitar as diferenças (tolerância), amar o próximo (amor) e buscar a justiça social (compreensão) conduz a um mundo mais harmonioso — uma utopia platônica realizável através da prática ética e espiritual. A verdadeira evolução espiritual consiste em tornar-se um ser mais nobre e íntegro, distinto fisicamente, mas essencialmente igual a todos, cultivando virtudes que transcendem o material e se aproximam do divino.

O Som do Aplauso

O aplauso nasce silencioso, como uma brisa que percorre a pele antes da tempestade. Não se anuncia, não pede licença. Surge no coração antes de chegar às mãos, uma pulsação que cresce, uma música sem notas, uma promessa de celebração. Às vezes é tímido, hesitante, quase secreto; outras, explode como relâmpago, arrebatando tudo à sua volta. É a voz do mundo sem precisar de palavras, a língua universal que todos entendem, do palácio à rua, do teatro à praça.

Bater palmas é tocar o invisível. É tocar a alma de quem cria e a nossa própria, reconhecendo que, por um instante, algo maior nos conecta. Um discurso que nos emociona, uma canção que nos atravessa, um gesto simples de coragem: o aplauso chega, e com ele, a vida se alonga, se expande, se revela. Cada palma é um fio de luz que se entrelaça a outros, formando teias de reconhecimento, redes de afeto que nos lembram que pertencemos a algo que nos transcende.

E quando nos aplaudem, sentimos o mundo inclinar-se gentilmente sobre nós. É um instante em que o tempo se dobra, e o espaço se torna estreito o suficiente para que a emoção transborde. Ser aplaudido é sentir que nossos passos, nossas escolhas, nossas palavras, nossos gestos, não passam despercebidos. É como se cada palma fosse uma centelha, cada estalo de mão uma declaração silenciosa: “Você importa. O que você fez, mesmo que pequeno, é eterno no coração de quem percebeu.”

O aplauso não é apenas reconhecimento. É memória que se forma no ar, é energia que atravessa gerações. Um ato simples, que, no fundo, guarda a grandeza de todos os tempos: os poetas que nos ensinaram a sonhar, os músicos que nos fizeram dançar, os heróis anônimos que mudaram o mundo sem esperar nada em troca. Cada palma ecoa no vazio, mas também nos corações, deixando rastros que não se apagam.

E há o aplauso coletivo, poderoso, que se multiplica e ressoa como ondas que se chocam na praia: ele transforma multidões em uma só voz, mãos em sinfonia, um instante fugaz em eternidade. Mas mesmo o aplauso solitário, discreto, não perde sua força. Ele é semente, promessa, lembrança. Ele diz que alguém viu, alguém sentiu, alguém se importa. E isso é suficiente para mudar tudo, para aquecer a alma mais fria, para acender coragem onde antes havia dúvida.

Devemos aplaudir sempre. Aplaudir o pequeno e o grande, o banal e o extraordinário, o gesto secreto e a conquista visível. Cada palma é uma mensagem: continue, não desista, você existe e importa. Cada som, mesmo breve, é um sopro de eternidade que nos conecta uns aos outros, que nos lembra da beleza da vida em sua fragilidade e intensidade.

O aplauso é dança, é música, é silêncio e rugido ao mesmo tempo. É memória, é calor, é abraço que atravessa paredes, continentes, séculos. Ele nos ensina que reconhecer é viver, que celebrar é existir. E assim, deixo o aplauso correr pelo mundo: que ele toque todos que precisam ouvir, que inspire aqueles que precisam caminhar, que transforme cada instante em eternidade.

Bata palmas. Aplauda o que merece e o que parece não merecer. Aplauda a si mesmo, a quem você ama, ao desconhecido que fez diferença, ao tempo que passou e ao que virá. Pois no final, cada palma, cada gesto, cada som é uma pequena eternidade que ecoa na vastidão do universo — e, por um instante, faz tudo ser perfeito.

A Loucura da Diferença

A palavra “louco” ou “loucura” sempre chega como uma sombra mal interpretada. Sempre que nos deparamos com algo diferente — seja vendo, sentindo ou participando — há olhos prontos a nos rotular: “isso é loucura”. Mas loucura não é diferença. Loucura não é singularidade. Loucura, muitas vezes, é apenas o medo do outro, do que foge do padrão, do que escapa ao roteiro que a sociedade insiste em escrever.

As pessoas têm mania de rotular o diferente. Acham estranho, brega, cafona, anormal. São palavras frias, julgamentos que se travestem de senso comum. Alguns dizem não ser conservadores, mas suas reações mostram que não estão aptos a aceitar costumes, modas ou tradições do passado. Um neo-conservadorismo disfarçado, que subjuga o conservadorismo antigo e sufoca a diferença.

Digo isso porque nem sempre me sinto igual aos outros. Quero vestir algo diferente, falar algo diferente, e isso não deveria ser chamado de loucura. Uma camisa sem gola, uma gravata borboleta — são pequenos gestos de ousadia, cores em um mundo de tons neutros. E, ainda assim, há olhares que nos transformam em E.T.s, em seres de outro planeta, seres que caminham fora do tempo.

Imagine a cena: eu, em uma repartição pública, usando uma gravata borboleta azul como céu de verão, e todos me olhando como se fosse um erro da natureza. Ou pior, um terno rosa choque sob o sol ardente do Centro-Oeste brasileiro — seria uma tempestade de olhares, cochichos e dedos apontando. E tudo por um pedaço de tecido. A gravata borboleta, no entanto, é apenas poesia, um fio de diferença que não fere ninguém.

Na Europa e na África, vejo outro filme: cores, tradições, singularidades dançam juntas sem medo. No Brasil, ainda nos prendemos a paletós em dias escaldantes, esquecendo que o corpo transpira, que a alma pede liberdade. Deveríamos vestir vestidos africanos, cores que contam histórias, que atravessam gerações e respeitam o calor do nosso chão. Não é loucura, é vida.

Não estou revoltado; apenas penso. Loucura verdadeira é doença, patologia que precisa de cuidado. Diferença é vento, é chuva, é sol que colore a existência. Mas estamos cercados de preconceitos. A não aceitação do outro gera guerras silenciosas, pequenas e grandes, nas ruas, nas escolas, nas famílias. A diferença é nossa riqueza; a desigualdade, sim, é o inimigo.

Imagine ir à Ilha de Páscoa e ver tudo igual a Brasília, ou viajar ao Butão e encontrar uma lanchonete da Asa Sul. Que tédio, que vazio! Precisamos de reflexão, de diferença, de aceitação. Se cultivássemos isso, metade dos problemas — bullying, discussões, vergonha — se dissiparia como fumaça ao vento. Já estaríamos em metade do caminho da mudança que Platão imaginou.

Dentro de mim, ideias e pensamentos surgem como ondas em um oceano tempestuoso. Tentam escapar, se perder, desaparecer. Tento capturá-los, mas alguns se vão, como estrelas que se apagam antes do amanhecer. Talvez, em outra vida, poderei agarrá-los por completo. Assim como Ludwig Wittgenstein, busco o isolamento não para me calar, mas para permitir que minhas ondas internas cheguem à luz.

“Tenho a impressão de ter conseguido trazer à luz as ondas de pensamento que estavam confinadas dentro de mim.”

Se algum dia eu conseguir, se essas ondas, esses pensamentos, forem finalmente visíveis, compreendidos, então estarei metade realizado. Metade de um sonho que é, na verdade, a busca eterna pela diferença, pela liberdade e pela beleza da loucura que todos nós carregamos.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

"Sou para meu amado e meu amado é para mim"

Há frases que nos atravessam o peito como uma melodia que insiste em tocar, mesmo quando o mundo ao redor se cala. Esta, do Cântico dos Cânticos, 6:3, é uma delas. Muitos homens evitam revelar suas paixões, escondem seus sentimentos atrás de um muro de pragmatismo ou vergonha. Mas para mim, a vida perde sentido quando não se pode falar do que pulsa dentro do coração, especialmente se são sentimentos puros, feitos de amor e entrega.

Dizer essas palavras em voz alta é como abrir uma janela para o céu: alguns amigos, ao me ouvir, talvez digam, rindo: “Putz, esse Rui é muito pêra!” Mas não posso fingir que não sinto; este é meu jeito, e aqui deixo um pedaço dele, como quem deixa uma pétala cair em um rio, esperando que flutue.

A frase, em hebraico, soa assim: “Ani ledodi veDodi li”. É a inscrição da minha aliança de casamento, caso um dia eu encontre minha alma gêmea perdida. Na sociedade israelense e na moderna tradição judaica, é comum gravar essas palavras em alianças. Algumas pessoas colocam por dentro, outras por fora, mas todas reconhecem: é bonito, é significativo, é um toque de eternidade no efêmero. Garotas costumam dizer: “Rui, é muito fofo”. Eu concordo, mas vejo algo além da fofura: vejo diferença, vejo romantismo, vejo a coragem de tornar o amor visível, concreto, gravado em metal.

Mas esta frase vai além do simples amor humano. Ela é o casamento do céu com a terra, do divino com seu povo, do homem com a mulher. Cada sílaba carrega significados que se desdobram como labirintos de luz e sombra, com camadas filosóficas e numéricas que a tradição cabalística reconheceria. Não ouso afirmar seu segredo total, mas sei que há um mundo inteiro escondido em sua aparente simplicidade.

E ainda há a tarefa delicada: encontrar a alma gêmea e convencê-la a escrever essas palavras em nossas alianças. Não é apenas romantismo; é um pacto, um pequeno universo selado em ouro ou prata, um desafio de amor que se renova a cada olhar e a cada toque.

Ani ledodi veDodi li.
Eu sou de meu amado, e meu amado é meu.
E talvez, em cada batida do coração, o mundo se lembre de que o amor, quando verdadeiro, não se esconde.

sábado, 14 de agosto de 2010

Chakana ou Cruz Andina


Em minhas viagens ao Peru, sempre fui atraído pelo invisível que se torna visível nos símbolos e artefatos das civilizações pré-colombianas. Desde a majestade dos Incas até as culturas que os precederam, como as que habitaram Tiwanaku – um lugar que, confesso, merece ser visitado muitas vezes –, sinto-me transportado para outro tempo, outro espaço, quase outra vida. O deus Tumi, a Pachamama que abraça a terra, a chica sagrada que parece engarrafar a própria essência dos Andes… cada elemento é um portal que me arrasta para um mundo que se recusa a ser apenas passado.

Entre todos os símbolos que encontrei, nenhum me captura tanto quanto a Chakana, a famosa cruz andina. Ela está por toda parte: esculpida em madeira, bordada em tecidos, pintada em portas de casas e igrejas, insistindo em nos lembrar que há uma ordem mais profunda, invisível, por trás do que os olhos podem ver. Para a mitologia incaica, a Chakana é a árvore da vida – uma árvore que, como tantas outras em culturas ao redor do mundo, conecta céus, terra e submundo em um único gesto simbólico. Seus degraus e polos, maiores e menores, parecem apontar para os quatro cantos do mundo, uma geometria sagrada que organiza o cosmos em níveis e dimensões.

O quadrado central da cruz representa os mundos: Hana Pacha, o mundo superior dos deuses; Kay Pacha, nosso mundo, terreno e efêmero; e Ucu ou Urin Pacha, o mundo inferior, habitado por espíritos e ancestrais, em contato direto com a terra. O círculo no centro – o Axis – é mais do que um vazio: é passagem, eixo cósmico pelo qual o xamã transita, viajando entre dimensões, conectando o visível ao invisível. Ele também remete a Cusco, o coração pulsante do Império Inca, e à constelação do Cruzeiro do Sul, lembrando que o microcosmo e o macrocosmo são apenas faces da mesma verdade.

Mas se a Chakana tem um significado técnico profundo, ela carrega para mim uma dimensão ainda mais pessoal. Sempre que a vejo, penso nas viagens, nos amigos que caminharam comigo por estas montanhas – Silvana, Humberto –, e nas histórias que vivemos entrelaçados com aquela terra antiga. A cruz tornou-se um símbolo de amizade, de conexão mística entre o mundo presente e aqueles tempos remotos que, talvez, já tenha visitado em outras vidas ou realidades paralelas. Ela traz boas lembranças, uma sensação de continuidade, de pertencimento a algo maior e silenciosamente eterno.

O xamã, figura que transcende sacerdotes, feiticeiros e curandeiros, era capaz de alterar seu estado de consciência à vontade, mergulhando no submundo para descobrir as causas de doenças ou desgraças humanas – quase sempre atribuídas a violação de tabus. Esses trances, induzidos pelo consumo de substâncias alucinógenas, como a ayahuasca, eram a ponte entre o humano e o divino, entre o visível e o invisível. Ao contemplar a Chakana, sinto que cada viagem minha, cada amizade, cada memória, é uma pequena travessia xamânica: um mergulho no cosmos em busca de sentido e beleza.

O 15 de agosto

15 de agosto. Um dia que, à primeira vista, parece igual a qualquer outro, mas que guarda dentro de si séculos, mundos e pequenos milagres. Em Constantinopla, Miguel VIII Paleólogo subiu ao trono, e o Império Bizantino respirou mais uma vez, cheio de cerimônia e silêncio, como se o tempo pudesse se dobrar sobre si mesmo. Lucca se rendeu a Francesco Sforza, e uma cidade mudou de mãos sem que ninguém pudesse medir o impacto nos olhares das pessoas comuns.

Mais tarde, na América, fundava-se a Cidade do Panamá, e Juan de Salazar y Espinoza plantava a semente de Assunção, onde homens e mulheres iriam construir uma vida que nem podiam imaginar. Libertos da escravidão nos Estados Unidos erguiam a Libéria, como quem cria uma esperança com as próprias mãos marcadas pelo sofrimento. E no Brasil, bispos, dioceses e catedrais eram traçados em papel e pedra, como se o espírito também precisasse de mapas.

O cinema estreava “O Mágico de Oz” e, ao mesmo tempo, uma nação inteira celebrava sua independência na Índia. A Coreia se dividia em dois mundos, e no Morumbi se lançava a pedra fundamental de um estádio que guardaria multidões e histórias futuras. Congos e Beatles, Woodstock e festivais, cada evento se entrelaçando num fio invisível que atravessa décadas e continentes.

E, nesse mesmo dia, nasceram pessoas que o tempo escolheria para marcar a história: Napoleão, com sua ambição desmedida; Walter Scott, que sonhava mundos com palavras; Bernardo Guimarães, que já pressentia a alma do Brasil; Oscar Peterson, que tocaria notas que se infiltrariam nos ossos do mundo. E, curiosamente, no mesmo 15 de agosto de 1983, eu nasci, talvez sem entender, talvez com a mesma urgência de todos os que vieram antes, para ocupar este espaço efêmero e cheio de histórias.

15 de agosto: um dia que não termina. Ele se desdobra em outros dias, em outros olhares, em pequenos gestos que ninguém percebe. E ainda assim, continua lá, pulsando silencioso, guardando a memória do que foi e do que talvez nem tenha acontecido.


segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Diferenças étnicas no Oriente Médio

Muito se fala sobre o Oriente Médio. Discussões inflamadas ocupam debates acadêmicos, mesas de bares e corredores de mídia. Entretanto, em meio a tanta conversa, poucos realmente compreendem a riqueza e a complexidade das etnias e religiões que compõem esta região milenar. Confundir árabes com muçulmanos ou judeus com israelenses é um erro tão comum quanto superficial. É uma confusão que impede a compreensão mais profunda das raízes históricas dos conflitos e das singularidades culturais que moldam os povos do Oriente Médio.

A mídia tende a focalizar o drama — guerras, golpes e crises humanitárias — mas raramente se detém sobre a origem desses povos, seus costumes ou seus sistemas de crenças. Por isso, revisitar a história, mesmo que brevemente, é essencial para que se entenda que a região é, antes de tudo, um mosaico de histórias e narrativas.

Podemos começar pelo relato bíblico de Gênesis, que oferece uma das narrativas mais antigas de diferenciação entre povos. Abraão, figura central tanto para judeus quanto para árabes, casou-se com Sara, que era estéril. Impaciente com a demora de Deus em conceder-lhe um filho, Sara propôs que Abraão gerasse descendência com sua serva, Agar. Do encontro nasce Ismael, a quem Deus promete tornar pai de uma grande nação. Pouco tempo depois, Deus concede a Sara um filho legítimo, Isaac, e dele surgem os fundamentos do povo judeu. Assim, já nos primeiros capítulos da história bíblica, vemos a origem de dois grandes ramos de civilização: o árabe, descendente de Ismael, e o judeu, descendente de Isaac.

No entanto, não se deve confundir a etnia com a religião. O povo árabe tem raízes genealógicas que remontam à Península Arábica e se consolidam em sua história milenar. Sua identidade é moldada por fatores linguísticos, culturais e políticos. Como observa Habib Hassan Touma, “a essência da cultura árabe deve envolver a língua árabe, o islã, a tradição e os costumes” (1996, p.xviii). Em termos modernos, ser árabe significa, portanto, pertencer a um contexto cultural que compreende idioma, história e vivência social, independentemente da fé religiosa. O islamismo, surgido mais tarde com o profeta Mohammed, é apenas uma das religiões praticadas por árabes, ainda que seja a predominante.

Dentro do Islã, surgem duas grandes correntes: os sunitas e os xiitas. Os xiitas, aproximadamente 16% dos muçulmanos, veneram a linhagem do Profeta através de Ali, genro de Mohammed, e são conhecidos por sua ortodoxia religiosa e rigor ritualístico. Os sunitas, majoritários, representam cerca de 84% dos muçulmanos e se vinculam aos califas abássidas, tendo uma abordagem mais moderada da prática religiosa.

O judaísmo, por sua vez, emerge com Isaac, consolidando-se historicamente com Moisés, que codificou as leis e tradições que fundamentam a identidade do povo judeu. Mas, atenção: nem todo judeu é israelense, assim como nem todo israelense é judeu. O Estado de Israel, criado em 1948, engloba uma população diversa, formada por judeus, muçulmanos, cristãos e outros grupos religiosos. Assim, a nacionalidade e a religião nem sempre coincidem, e a simplificação leva a equívocos frequentes na análise da região.

Ainda assim, é impossível falar do Oriente Médio sem mencionar outras etnias e povos que compõem seu quadro humano: os persas, cuja maioria é muçulmana, mas que têm origem e cultura distintas dos árabes; os beduínos, nômades do deserto; os berberes do norte; os turcos, gregos e diversos outros grupos que carregam tradições únicas. Cada um destes povos contribui para o intrincado tecido social do Oriente Médio, marcado por contrastes, convergências e tensões históricas.

O equívoco mais comum — confundir religião, etnia e nacionalidade — explica muito do que vemos hoje nos jornais, onde cada conflito parece nascer de um desentendimento religioso, mas, na realidade, envolve disputas territoriais, memórias históricas e identidades culturais profundamente enraizadas. Compreender o povo árabe sem reduzi-lo ao Islã, reconhecer que israelense não é sinônimo de judeu, ou que o judaísmo é uma fé e não uma nacionalidade, é o primeiro passo para entender o Oriente Médio de maneira mais ampla e menos maniqueísta.

Ainda há muito a dizer sobre o mosaico de povos e culturas da região. Mas, para aqueles dispostos a ler além dos títulos sensacionalistas, há uma lição clara: o Oriente Médio não é apenas conflito. É história, tradição, diversidade e complexidade. E é somente ao respeitar essa riqueza que podemos começar a compreender, de fato, os desafios e impasses de hoje.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Tratado de Roma (1957): o início da UE

No blog, sentei-me a pensar sobre a União Europeia, não para ensinar nada a quem já sabe, mas para tentar compreender como um continente marcado por guerras conseguiu reinventar-se. Às vezes penso que história é isso: uma tentativa de organizar o caos do passado para imaginar o que vem adiante.

Tudo começou com o Tratado de Roma, assinado em 25 de março de 1957. Alemanha, França, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo uniram-se em torno de algo maior que eles mesmos. Naquele momento, a Europa ainda respirava as cicatrizes da Segunda Guerra Mundial e vivia sob a sombra da divisão global, entre EUA e União Soviética. A economia cambaleava, as fronteiras ainda eram barreiras e a desconfiança entre os países permanecia viva. E, no meio desse cenário, surgiu a ideia de que talvez, juntos, poderiam construir algo diferente.

O Tratado não era apenas papel assinado. Estabeleceu a União Aduaneira, o Mercado Comum e a Política Agrícola Comum — pilares que ainda sustentam a União Europeia. Prometia o desaparecimento das barreiras alfandegárias em doze anos e garantia proteção à agricultura, uma blindagem contra o caos que vinha do mundo exterior. Ainda assim, tratava apenas da circulação de bens; pessoas e ideias teriam de esperar, como se a Europa precisasse de tempo para confiar em si mesma.

E pensar que, com o tempo, esses países foram cedendo parte de sua soberania, passo a passo, até que as instituições europeias se tornassem referência para o mundo. Mercosul, Comunidade Andina, Nafta, Unasul — todos tentam aprender, cada um a seu modo, que integração não é apenas comércio, mas confiança e cooperação. A Europa ensinou isso silenciosamente, quase sem alarde, entre protocolos e emendas, até que o Tratado de Maastricht consolidou a União Europeia como a conhecemos hoje.

Hoje, olhando para esse passado, vejo ecos no presente. O mundo continua dividido, mas também interligado de formas que nossos antepassados não podiam imaginar. Pensar na União Europeia é lembrar que blocos regionais podem ser mais do que acordos comerciais: podem ser uma aposta na convivência, no futuro coletivo. E se olharmos para a América do Sul, não seria hora de imaginar um Mercosul que funcione de verdade, que vá além de números e tarifas, e se torne um motor de integração real, capaz de sustentar sonhos e projetos comuns?

A história nos mostra que é possível. O presente nos desafia. E o futuro nos chama a agir. Talvez seja essa a lição mais importante do Tratado de Roma: mesmo após guerras e divisões, podemos construir juntos algo maior que nós mesmos.

Terceira Revolução Industrial, ufa!!!

Então, chegamos à Terceira Revolução Industrial. Alguns dizem que não existe um ponto exato para seu início — afinal, cada passo parece consequência do anterior —, mas talvez seja mais fácil compreender se olharmos para ela como um marco dos anos 1980, quando o mundo parecia finalmente emergir das crises, das guerras e da divisão bipolar.

Essa nova era, também chamada Revolução Técno-Científica, trouxe consigo gigantes complexos industriais, empresas multinacionais e uma explosão tecnológica que transformou a produção, a comunicação e até mesmo a percepção do tempo e do espaço. A robótica, a genética, a informática e a globalização redefiniram tudo. Antes, a fome podia ser desculpada pela escassez; agora, ela é apenas resultado da má distribuição. Antes, a comunidade parecia unida, entrelaçada por laços físicos, culturais e econômicos. Agora, o mundo se fragmenta: de um lado, trabalhadores com altos salários e status; de outro, os esquecidos do sistema, invisíveis e marginalizados.

É impossível não perceber, olhando por essa lente, o impacto na própria essência das comunidades. O que antes era uma rede de proximidade e pertencimento transformou-se em múltiplos fragmentos, cada grupo isolado, cada indivíduo mais distante do outro. Como na Cabala, podemos ver aqui uma metáfora da ruptura da unicidade: o mundo, que poderia ser um tecido harmonioso, se estilhaça. A Terceira Revolução Industrial acentuou essa fragmentação, mas também nos oferece as ferramentas para recompor o todo, se quisermos enxergar além da superfície.

A economia global cria blocos, acordos, barreiras e protecionismos: Nafta, Mercosul, União Europeia. Cada país busca resguardar sua existência, sua relevância, sua voz no concerto global. Mas, paradoxalmente, essa união aparente muitas vezes reforça a separação, porque a competição, a desigualdade e a desconfiança crescem lado a lado com a integração. A Rodada Doha, o G-20, o Grupo de Cairns — todos tentam organizar o caos, mas o caos, de certa forma, é a própria natureza da evolução.

O lado espiritual dessa transformação nos convida a refletir: assim como na Cabala a unicidade precisa ser reparada, o mundo contemporâneo clama por reconexão. Não basta tecnologia, conglomerados e comércio; precisamos de reconstrução do vínculo entre as pessoas, entre as comunidades. A fragmentação econômica e social, a desconfiança e a alienação são sintomas de um desequilíbrio que a Revolução Industrial exacerbou, mas que ainda pode ser curado se lembrarmos que a verdadeira força está na interdependência, na conexão que transcende o físico.

O mundo mudou, e nós com ele. É assustador, é confuso, é caótico. Mas também é um convite: reconstruir o tecido comunitário, restaurar a confiança, perceber que a tecnologia, a globalização e a riqueza não têm sentido se não servirem para aproximar, para unir. Talvez seja esse o desafio maior da nossa era: transformar fragmentos em um todo, e fazer da revolução não apenas técnica, mas humana.

Tropicasher?

Era uma manhã qualquer, e o sol brincava de atravessar as cortinas, espalhando um mosaico de luz sobre a mesa de café. Entre goles de chá e pensamentos soltos, a vida parecia sussurrar suas pequenas grandes verdades: que o mundo é vasto, que cada cultura é um universo, que o conhecimento é uma aventura sem fim.

E foi nesse espírito de descoberta que surgiu o Tropicasher, uma ponte que conecta a tradição milenar do Judaísmo ao ritmo e à alegria do Brasil. Não é apenas um site, não é apenas um projeto: é um convite. Um convite para mergulhar no conhecimento, para rir, aprender, se emocionar e perceber que fé e brasilidade podem dançar juntas, harmoniosamente, como um samba que encontra a melodia do Shofar.

Para mim, Tropicasher sempre foi mais do que uma experiência educacional. Era uma resposta gentil, mas firme, àqueles que duvidam que seja possível viver uma vida religiosa genuína no Brasil. Era a prova viva de que tradição e inovação podem caminhar de mãos dadas, mostrando que a cultura não limita a espiritualidade; ao contrário, a enriquece.

E por trás de tudo isso, havia Paulinho Rosenbaum. Um homem que percorreu caminhos incríveis: do Kibutz à Universidade em Israel, do serviço em Tzahal aos estudos profundos nas Ieshivás de Jerusalém e Toronto. Um brasileiro que fez do Judaísmo uma casa aberta, que ensinou com inteligência, curiosidade e um sorriso largo. Paulinho já brilhou na televisão, já foi destaque em jornais, e agora brilha em nossos corações.

Infelizmente, em 2025, Paulinho nos deixou. Mas deixamos de vê-lo apenas fisicamente; sua luz, seus ensinamentos e seu legado permanecem mais vivos do que nunca. Voltar ao post, refazer as palavras, é mais do que homenagem: é um ato de amor, de gratidão e de celebração da vida que ele nos inspirou a viver.

É isso mesmo, meus amigos: Tropicasher! Um mundo maravilhoso do conhecimento judaico, feito com a alma brasileira, guiado pelo coração de Paulinho. E a todos que têm a sorte de conhecer este projeto, saibam que estão tocando algo eterno, que transcende o tempo e o espaço.

Cordial Shalom, sempre em memória e em honra de Paulinho.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O reflexo do neocolonialismo no hemisfério sul: a II Revolução Industrial

Diferentemente da I Revolução Industrial, que ficou restrita à Inglaterra, a II Revolução Industrial teve uma abrangência maior, perpassando pelos EUA, Europa e Ásia. Acredita-se que ela tenha começado no Século XIX. Depois do carvão e da locomotiva (inovações surgidas na I Revolução), aparecem neste momento o motor à explosão e o petróleo. Também o ferro passa a ser substituido pelo aço e surgem os diferentes tipos de Administração. Mudanças significativas para o nóvo século!


O Fordismo surge com suas linhas de produção em montagem em série (sistema de administração). O ponto negativo deste sistema é que o trabalhador, mais do que na I Revolução, ficava mais alienado, pois somente se inteirava de sua parte do sistema produtivo, não conhecendo os outros segmentos. Assim seguiu o mesmo exemplo no Taylorismo, que dividiu entre funções intelectuais e funções laborais. A nova Revolução buscava um aumento na produtividade e também demonstrava a necessidade por novos mercados consumidores, assim como novos fornecedores de matéria-prima.

Este sistema de “grande produtividade” deu origem ao que chamamos de neocolonialismo, isto é, as potências produtoras “colonizavam” países da África, Ásia e América (central e sul) para fornecerem matéria-prima e, uma vez industrializados, os produtos eram exportador para os países fornecedores.

Eu acredito que este neocolonialismo seja a fonte do atraso nos países do sul. A política “do norte” atendia aos interesses comerciais das nações de fato envolvidas com a Revolução Industrial. Por outro lado, os governantes do sul não estavam muito interessados com o desenvolvimento do país e sim com os interesses dos grandes latifundios. Muitas vezes os governantes eram proprietários e exportadores de matéria prima e para eles valia a pena exportar e não se preocupar com o desenvolvimento nacional. A economia da época atendia aos interesses exclusivos daqueles que de fato estavam envolvidos com o sistema agrário produtor-exportador.

Assim, tinhamos um equilíbrio. As nações industrializadas não queriam que outras surgissem para competir, por outro lado, pagavam pelas matérias primas, que eram fornecidas por aqueles que controlavam a economia dos países. Nessas condições, os países fornecedores de matéria-prima, sem tomar ciência disso, tornavam-se “colônias informais” dos “importadores industrializados”.

A economia e a política mal planejada fez com que o desemprego nos países fornecedores de matéria-prima prejudicasse o desempenho econômico das nações, que até hoje sofrem os relfexos da I e II Revolução Industrial. Além do fracasso político de muitos países, o problema com a situação economica era grave. Muitos países se tornaram agrícolas por “imposição economica” da Europa e EUA, a mão-de-obra não se especializou e o trabalho manufaturado não suportava a demanda. Tenho pra mim que este é um dos fatores determinantes para o pouco sucesso industrial e economico dos países do sul nos dias de hoje.

Ademais, acrescento que quando não nos preocupamos com o futuro (me refiro ao futuro de todos) nos tornamos responsáveis por qualquer tipo de desgraça que possa ser sucitada. Por exemplo, questões do meio ambiente, questões economicas, políticas dentre outras. Se pouparmos água, vamos ter no futuro, se lutarmos por um bom representante, garantiremos a democracia no amanhã, se evitarmos o endividamento e políticas economicas pouco viáveis, teremos a certeza de um país mais jutso e assim por diante.

Direita, esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda...volver!!!

Há algo estranho na forma como dividimos o mundo. Esquerda. Direita. Palavras que flutuam no ar, que tentamos segurar como se fossem pedras, mas se desfazem entre os dedos. Tento olhar, tento entender, e tudo parece escapar, como se a realidade fosse maior do que nossas pequenas classificações. Será que alguém realmente acredita que estas linhas que traçamos dizem algo sobre a vida?

Lembro-me da Revolução Industrial, séculos atrás, como se fosse uma lembrança emprestada. O carvão, as máquinas, as cidades crescendo em pressa e fumaça, a terra sendo esquecida, desfeita sob o peso da engrenagem. Surgiram nomes e conceitos, surgiram classes. O operário. O burguês. Marx. Smith. Palavras grandes que deveriam explicar o mundo, mas que, na verdade, só criaram mais separações, mais compartimentos para nos perdermos.

E me pergunto: será que a vida cabe em compartimentos? Será que se pode reduzir tudo a luta de classes, a leis de mercado, a bandeiras políticas? Não. A vida escapa. A vida se esconde entre os intervalos, nos silêncios, nos gestos que ninguém percebe. E talvez o que chamamos de desigualdade não seja uma linha entre opostos, mas um espaço profundo que nos atravessa e nos torna frágeis, invisíveis, humanos.

Hoje o mundo mudou novamente. O proletário se diluiu, o burguês se metamorfoseou, e aquelas separações que pareciam sólidas se tornaram sombra. O que existe agora é uma confusão silenciosa, feita de corrupção, de distâncias, de vidas fragmentadas. E ainda assim, tentamos encaixar tudo em palavras: esquerda, direita, progresso, atraso. Mas as palavras não seguram o mundo. Elas só indicam o vazio que deixamos entre nós e ele.

Não se trata de escolher um lado. Trata-se de perceber que o mundo não cabe em caixas. Que a vida é contínua, apesar de nossas tentativas desesperadas de separá-la. E nesse contínuo, há um lugar para olhar, para sentir, para compreender que estamos todos conectados, mesmo quando nos dizem que estamos divididos.

Talvez seja isso. Talvez, se soltarmos as palavras, se deixarmos de nomear, possamos finalmente ver. Ver que a vida acontece além das linhas que desenhamos, que o tempo flui sem se importar com nossos mapas. E que, no fundo, toda divisão é apenas uma ilusão, uma necessidade que inventamos para nos orientar, enquanto caminhamos pelo impossível.